21.4.13

Tempo primordial

Há certamente um tempo anterior às palavras!
Envoltos no esgrimir de ideias intangíveis, aceleramos e quando damos conta já não podemos voltar ao ponto de partida. As palavras já não representam o que pensamos, mas o que os outros delas compreenderam. E como não temos o dom da heteronímia, de repente percebemos que a comunicação se tornou equívoca ou, mesmo, absurda.
E é nesse momento que gostaríamos que o tempo se despojasse da palavra.
 
( Não se trata, aqui, de arrependimento, mas do reconhecimento de que quando os pontos de partida são difusos, o comboio raramente para na nossa estação... Corremos em linhas paralelas, intangíveis, para um ponto inexistente. Espero que perdoem a anfibologia!)

20.4.13

Ser voluntário

Ainda adolescente, alguém terá pensado que a minha educação passaria por servir a «Conferência de S. Vicente de Paulo». Não me lembro de me terem explicado como é que a «sociedade» funcionava. Lembro, no entanto, que, num determinado dia de cada mês, me deslocava a uma casa dos arredores de Santarém, onde deixava um saco de arroz, bacalhau, batatas e farinha, aos pés da cama de um moribundo. Não sei se alguma vez lhe conheci o nome, mas recordo para sempre que o homem padecia de um indescritível e doloroso cancro do esófago, o que o impedia de falar e de respirar. E continuava a fumar! À volta, os sinais eram de abandono e de medo. Não sei bem por que motivo este meu voluntariado involuntário cessou. À distância, a única explicação que encontro resulta da minha súbita mudança de rumo... (Hoje o cheiro do tabaco atordoa-me.)
 
Anos mais tarde, vi-me na situação de acompanhar (e de financiar) novas formas de voluntariado que continuavam a aproveitar o espírito solidário dos jovens. Fi-lo sempre com alguma reserva, pois tinha a sensação de que as ONGs se dividiam em «voluntários profissionais» e em «voluntários amadores». Frequentemente, os projetos dinamizados eram fruto da abnegação e da energia criativa dos tais jovens solidários. (E nesse contexto, passei a viver à força nos bastidores!)
 
Atualmente, a maioria dos jovens voluntários não encontra emprego ou pura e simplesmente perdeu-o. De pouco lhes serviu a abnegação, a criatividade, o sacrifício!
 
Quanto a mim, é cada vez mais claro que a caridade e o assistencialismo não passam formas encapotadas de exploração não só dos mais necessitados como dos voluntários genuínos. 

19.4.13

Palavras cunhadas

Há pessoas cuja presença, por si só, incomoda!
Há outras cujas palavras desconexas aborrecem!
Outras ainda irritam pelas palavras sabujas!
 
Há ainda as palavras dos catecúmenos, dos pioneiros, dos correligionários, dos fãs!
Palavras sujas, gastas, repetidas!
Há também  as palavras pífias!
 
Hoje, subitamente, a Assembleia da República desatou, em uníssono, a namorar! Parecia o Dia dos Namorados! Não sei se ofereceram flores, se se oscularam, mas desconfio que, ao regressarem a casa, só encontraram o silêncio dos traídos...
 
Ultimamente, as palavras têm  ganho a espessura e a forma da gelatina!
Será certamente essa uma das razões porque a memória me devolve a incómoda presença de Vergílio Ferreira:
 
«Nada mais há na vida do que o sentir original, aí onde mal se instalam as palavras, como cinturões de ferro, aonde não chega o comércio das ideias cunhadas que circulam, se guardam nas algibeiras
                  Vergílio Ferreira, Aparição
                                                             Ora, só há vida se o sentir for original!

18.4.13

Um dia com Luís Vaz…

Com tantos Camões a limpar a fachada, a disfarçar as rachas das paredes, a varrer o pólen dos plátanos, amanhã, a escola vai estar um brinquinho!
Mesmo que as cartas náuticas tenham sido recolhidas, nenhum aluno, émulo do Poeta, chegará atrasado e deixará de catrapiscar a colega do lado. E, sobretudo, nenhum perderá a oportunidade de ser feliz!
E nem a Troika nos fará desistir da cousa começada!
Há sempre uma solução nas trovas do Poeta.

A segunda, a D. Francisco de AlmeidaHeliogábalo zombava
Das pessoas convidadas,
E de sorte as enganava,
Que as iguarias que dava
Vinham nos pratos pintadas.
Não temais tal travessura,
Pois já não pode ser nova;
Que a ceia está mui segura
De vos não vir em pintura,
Mas há-de vir toda em trova.
A terceira, a Heitor da SilveiraCeia não a papareis;
Contudo, por que não minta,
Pera beber achareis,
Não Caparica, mas tinta,
E mil coisas que papeis.
E torceis o focinho
Com esta anfibologia?
Pois sabei que a Poesia
Vós dá aqui tinta por vinho
E papéis por iguaria.
Banquete dado na Índia a fidalgos seus amigos

17.4.13

Prece

«Eu queria ser simples naturalmente
sem o propósito de ser simples.
Saberia assim sofrer com mais calma
rir com mais graça.
E saberia amar sem precipitações.
Nas minhas ironias haveria generosidade.
Nas minhas amarguras
haveria conformação e paciência.
(...)
Eu queria ser simples naturalmente
sem saber que existia a simplicidade.
JORGE BARBOSA, Claridade, Janeiro 1947

Não peço nada de extraordinário! Não peço riqueza! Não peço «a perfeição das coisas»! Nem ir além da Taprobana! Nem quero desistir da cousa começada!
 
Peço apenas que me deixem sumir naturalmente...
 
Se estiverem de acordo, prometo não me intrometer em nada que não seja natural!

16.4.13

A Natureza em Manhã Submersa

A natureza, em si, simplesmente não existe neste romance ou, por outras palavras, ela mais não é do que a projeção do estado de espírito do protagonista ( e de certo modo do narrador/autor):
A - «Pelas portas das janelas sem vidros, eu via os campos enrodilhados de fúria, aguentando no dorso a praga de calor. Um olho ingente baixava do céu, fitava os campos, um silêncio rígido vibrava verticalmente como corda retesa.»
B - «Longo tempo uma ave negra pairou sobre nós, unindo-nos com as suas asas compridas
C - «Saí. Um rumor larvar alastrava pelos campos já um pouco desafrontados pelo calor. Um vento largo de céu e de montanha erguia-se do fundo do tempo, curvava com o azul e caía longe, para lá da noite que viria.»
D - « Um sol avermelhado rasava as árvores do jardim, coroava em silêncio a cabeça dos montes. No ar fresco de brisas, as pancadas do tanoeiro subiam para o céu, de grandes braços abertos. Num instante parei frente à janela a olhar tudo isso, banhado de súplica sem esperança.»
Quatro exemplos e em nenhum deles, a natureza tem autonomia ou contraria o EU. Ela, apenas, reflete a revolta, a condição, o desespero, o destino do sujeito, o desejo de que a morte o liberte da prisão materna, da prisão pequeno-burguesa, da prisão do seminário... 
A miséria, a fome, a ignorância, a submissão impõem a António Santos Lopes um caminho sem retorno!  

15.4.13

Manhã Submersa

Leio e releio Manhã Submersa, de Vergílio Ferreira, e só encontro silêncio, solidão, ocultação, noite, medo, pavor, pesadelo, inferno, demónios ( solitário e carnal), censura, crime (pecado), castigo (físico e psicológico), castração, amputação, MORTE.

As estações estão lá, mas anoitecidas, pavorosas, como se fossem pedregulhos prontos a esmagar os Gaudêncios, os Gamas e os Lopes. A natureza é um lugar horrendo (locus horrendus): «O vulto grande das árvores crescia na escuridão, como faces lôbregas que avançassem aos urros para mim. Mas eu corria sempre, tropeçando nos canteiros, tropeçando no meu horror, até que finalmente me atirei para um banco junto a um tanque de águas mortas.»

As árvores, as águas, o silêncio, a noite, as vozes são a expressão da morte lenta de jovens que, no íntimo, apesar de não terem projeto de vida, a única vocação que pressentiam era a do sangue, da seiva, da libertação…

A outra vocação era lhes imposta pela origem humilde, pelo «ódio infeliz de uma fome que não se cumpriu».

Por instantes deixo-me surpreender pela placidez da natureza de maio: «No pequeno jardim do Seminário rescendiam as violetas, os campos em redor estavam verdes de promessa, e no ar cálido, ao escurecer, ecoava brandamente a memória breve do dia. À noite fazia-se a devoção do mês de Maria com flores, luzes e cânticos. Era uma devoção bonita, literária como o Natal e cuja unção nós explorávamos frequentemente nos exercícios de Português.»

Afinal, maio era uma devoção literária!

/MCG