19.1.16

Falar a verdade

"Não acredites num tipo que te diz «falar a verdade». Não porque seja mentiroso, mas porque ele próprio a não sabe." Vergílio Ferreira, Pensar.

Escrevemos, muitas vezes, do que não sabemos, atrevendo-nos a afirmar que as enguias que, um dia, vislumbrámos num poço lá foram postas por algum pescador finório. Essa passa a ser a nossa verdade e com um pouco de sorte a verdade do interlocutor... Até que alguém explica que as enguias dos poços para lá foram empurradas pelos enchentes dos rios que ao inundarem os terrenos lhes mudaram o destino...
Quando nos dizem que «as cheias são as maiores de que há memória», embalados pela verdade da cantiga, deveríamos revisitar os poços para verificar se há por lá enguias...
Não há quem não «fale a verdade»! Em jeito de remate, eu próprio escrevo frequentemente «é verdade que...» 
(Prometo, estar mais atento!)

Nestes últimos dias, dez candidatos à presidência da República têm asseverado «falar a verdade» e, como pensou Vergílio Ferreira, nenhum deles a conhece. Como acreditar neles?

A verdade pressupõe a crença, e como tal nada do que é dito deve ser tomado como verdadeiro. Talvez possível... 
E nova dúvida se levanta sobre «a confiança» ! Pedem-nos que tenhamos fé - colectivamente ...

18.1.16

Escreve sem pressa

Se não sabes o que escrever, não te preocupes!

Lê uma página ou duas, ou mais se te apetecer.
Sai de casa, procura um jardim e, mesmo sem estares cansado, senta-te num banco, olha à tua volta, segue o voo dos pássaros, escuta-lhes o chilreado; observa os arbustos e as flores, procura-lhes a cor; com um pouco de sorte, talvez, oiças as crianças e o ranger dos baloiços. 
Ao regressares, não te debruces sobre o parapeito, deixa que o Intercidades se afaste - o comboio fica para o dia em que te encontres no cais... Observa apenas os idosos que regressam das compras, em silêncio e tristes, porque só compraram uma pequena parte do que sonharam...
  
Se não sabes o que escrever, não te preocupes!

Amanhã, tu ainda podes ler as páginas que te apetecer, tu ainda podes substituir o jardim pelo cais. Os idosos, esses, vão ficando por casa, tristes... a dormitar. 

17.1.16

Se possível, não escrevas...

Se possível, não escrevas, não digas nada.

Fica, apenas, a olhar a criança-ciclista que desce a rua, vinte metros atrás do pai-ciclista... O automobilista segue-os, incrédulo, acabando por ultrapassá-los com cautela numa recta antes de virar à direita...

Se possível, não escrevas, não penses na curva, na briosa criança-ciclista e no pai-ciclista para além da curva, destacado, como se toda a estrada mais não fosse do que uma pista reservada a ciclistas...

16.1.16

A chave que a vida nos oferece

                 «A pessoa tem de renunciar à sua própria chave
            aquela que todos temos para abrir a vida, a nossa e a alheia
            e utilizar a chave que o texto lhe oferece.»
                  António Lobo Antunes, Receita para me lerem 
                        Segundo Livro Crónicas, Dom Quixote

Habituados a trazer no bolso ou na mala a chave de casa, do carro... acreditamos que para tudo há uma chave. Uma chave anterior, exterior a nós.
As chaves são nossa propriedade, e quando as perdemos ou no-las roubam  caímos no desespero e, devotos de ocasião, rogamos a santo António que no-las traga de volta...
E se o santo nos falta, recorremos às chaves do Areeiro (passe a publicidade) que nos arromba a porta e nos faz pagar uma nova fechadura para que possamos regressar ao sossego do porta-chaves...

No entanto, quando se trata da vida, de a compreender, de a enfrentar, não há chaveiro que nos valha, porque cada vida tem a sua própria chave, difícil de encontrar e, sobretudo, porque falta-nos a disponibilidade para a aceitar... até porque na vida não estamos sozinhos, e cada um tem a sua chave como única. 

15.1.16

Deve ser do vento...

Não os conheci pessoalmente. Ou se calhar, conheci-os e perdi-lhes a voz, porque, para mim, sem voz não há conhecimento.
Ter-se-ão zangado por escrito, o que é inevitável para quem lhes lê as obras, conhece as capelas e a filiação.
Dizem-me que sob os plátanos fizeram uns tantos apóstolos, uns mais niilistas, outros crentes na salvação da humanidade oprimida.
Durante muito tempo, tive como seguro que os discípulos se detestavam uns aos outros, de tal modo que era impossível atribuir o nome de um a um plátano, sem que os apaniguados do outro se enfurecessem, exigindo a exclusividade do dito cujo...
Um era existencialista, forjado num seminário da contra-reforma; o outro era marxista, enfeitiçado pelas conquistas soviéticas...
Atormentados pela Morte, colocaram-na num pedestal, servindo-a escrupulosamente. O primeiro, substituiu-a pelo Desespero Absoluto; o segundo, acabou por ver nela o Redentor do rebanho oprimido.
Agora há quem queira juntá-los! Deve ser do vento...       

14.1.16

Situação I

(À porta da sala de aula.)

O professor abre a porta.
Os alunos precipitam-se para o interior.

O professor continua do lado de fora.
(...)
Os alunos saem em silêncio...

13.1.16

'Nem Só de Caviar Vive o Homem'

Ler um extenso romance exige tempo e, por vezes, paciência. Nem sempre, a intriga é suficientemente verosímil, sobretudo quando abarca um longo período, marcado pelo terror da guerra - de 1939 a 1958.

O romance Nem Só de Caviar Vive o Homem, de J. M. Simmel, é um bom exemplo de uma obra que, sem ter a guerra como tema central, dá conta dos modos como esta se desenvolve nos bastidores, misturando situações de espionagem e de contra-espionagem com negócios mafiosos de toda a sorte, sem esquecer o papel decisivo da gastronomia...
Num mundo desumano, o herói, Thomas Lieven, sobrevive porque há sempre uma solução humana:

«Ao longo de toda a minha vida desconfiei das palavras altissonantes e dos grandes heróis. Também nunca gostei de hinos nacionais, de fardas, e daqueles a quem chamam homens fortes.» op. cit., pág. 506.  

Em conclusão, vale a pena ler este romance porque ajuda a compreender os bastidores da segunda guerra mundial nos países beligerantes e nos países neutros, como a Suiça e Portugal, até porque boa parte da ação decorre em Lisboa, revelando o modo como o Estado Novo se comportou durante aquela época.
A informação sobre Lisboa, Estoril e Cascais, é rigorosa.