13.4.18

Georg(ina)

George, apesar da província lhe prometer um futuro seguro, parte para a cidade, lugar de cultura, de libertação individual e de consequente afirmação profissional, adotando um estilo de vida experimental e, de certo modo, inconstante... Não se pode, no entanto, dizer que seja "incapaz de assistir num só terreno!"
A rutura com o lugar de origem só não é total porque o regresso provocado pela vontade de se desfazer  da casa de família obriga George a problematizar a decisão de partir - a memória devolve-lhe não a família ou o lugar mas uma parte de si própria, Gi..., a primeira idade, impetuosa e definitiva...
A segunda idade, a da escolha de uma estratégia de afirmação profissional no mundo artístico e de precarização dos laços afetivos, significa para George que a liberdade e a felicidade estão ao alcance desde que o dinheiro não falte...
Só que a viagem interior despoletada pela memória acaba por confrontá-la com o futuro de uma passageira inesperada - Georgina. A Senhora velha que, amarga, lhe profetiza um desfecho solitário e angustiado...
Em resumo, Georgina de seu nome, Gi para a família e amigos, rompe com o conservadorismo da província portuguesa, estrangeirando-se (George) para poder inscrever o seu nome artístico na galeria daqueles que se libertaram da terra que os viu nascer... viajar sempre, mudar de cidade... até que...

( O enigma para mim é que entre ficar e partir, entre a rua e o comboio, parece haver uma vereda que uns tantos percorrem sem o saber. Ignorância não parece ser, vaidade também não - um caminho sem motivação. )

12.4.18

Desassombrado...

Se a leitura dos contos "A duquesa e o joalheiro" e "O Legado" não me oferecem qualquer dificuldade interpretativa, o mesmo não posso dizer de outros contos como, por exemplo, "A Casa Assombrada"... A ordem acaba por ser substituída por uma nova ordem - o judeu deixa-se mover pelo apelo libidinal; a leitura do diário (do legado) provoca a descoberta de que a vida levada era de mentira... e o suicídio um ato de coragem, de amor...
Em "A Casa Assombrada" um par de fantasmas, saído da tradição neorromântica, anda à procura. Do quê? De um tesouro enterrado... da alegria... do coração da casa... da luz no coração...
Através do "fluxo de consciência» dos fantasmas e da ironia autoral, Virginia Woolf... destrói a ideia de que a casa assombrada possa ser um lugar de terror... A casa fora um lugar de partilha, de amor que a morte interrompeu...
Neste último conto, Virginia Woolf questiona o imaginário do leitor, ridicularizando as suas espectativas.

11.4.18

Às arrecuas

Por alguma razão que não consigo descortinar, os passageiros preferiam ocupar o lado direito do topo da nave, bem longe da cabine de voo. Os ventos enovelavam-se sem, no entanto, se levantarem. Pareciam esperar uma clarificação da rota... até que, dos céus, surgiu uma voz apaziguadora que pôs cobro ao delírio...
Compete, assim, ao arquiteto redesenhar a nave e, enquanto tal não acontece, nós vamos, às arrecuas, definir o fio condutor que tem cimentado a nossa ação...
(...)
Depois, o problema foi de mangas e de efluentes... sem cravos mas com círios... e lesmas sabotadoras..

10.4.18

Eréndira, a princesa sorridente...

Finalmente, terminei a leitura d' "A Incrível e Triste História da Cândida Eréndira e da sua Avó Desalmada", de Gabriel García Marquez.
Descobri Eréndira no espetáculo da Barraca,"Erêndira! Sim, Avó", de Rita Lello, onde se destacou a "desalmada avó", Maria do Céu Guerra.
A representação da Avó por Maria do Céu Guerra é tão "barroca" que difícil seria não lhe reconhecer o protagonismo nesta adaptação da novela ao teatro...
No entanto, o que me obrigou a ler a obra de García Marquez foi o antropónimo Eréndira já que a candura da jovem era por demais evidente e a sua resignação absurda - Sim, Avó! A exploração sexual a que era submetida por ordem da Avó roça o indizível...
Da leitura fica-me a ideia de que a América Latina vivia (vive) muito para além de qualquer racionalidade, a não ser a do dinheiro...
E o mais irónico é que Gabriel García Marquez atribuiu a esta infeliz escrava sexual o nome mexicano de Cândida Eréndira - a princesa sorridente, a que sorri, a que sonha...; manhã risonha.

9.4.18

Retrato de um dador de esperma chinês

Une banque de sperme chinoise veut des donneurs de « haute qualité idéologique » Doadores de alta qualidade ideológica


Retrato de um doador de alta qualidade ideológica:
  • defensor do papel dirigente do partido;
  • leal à causa do partido;
  • cidadão honesto;
  • respeitador da lei;
  • imaculado politicamente.
Não sei se estou a compreender. Depois da nota social, podemos, doravante, avaliar a qualidade do esperma, em função do comprometimento ideológico....

8.4.18

Eu quero ser mito

«Eu não sou um ser humano, eu sou uma ideia, todos vocês agora vão virar Lula...»

A mitificação, de acordo com a tradição, era assunto tratado pelos poetas ou, até, pela voz do povo...
Não sendo Lula da Silva poeta, ele, decidiu, no entanto, sentenciar o futuro do Brasil, reclamando para si o lugar de (mito) fundador...
Resta saber do quê... e isso nem o próprio Lula é capaz de adivinhar, embora ameace: « eles acham que tudo o que acontece nesse país é responsabilidade de Lula, agora eu responsabilizo vocês.»

7.4.18

Incongruências

Poco después, el viento de su desgracia se metió en el dormitorio como una manada de perros y volcó el candelabro contra las cortinas. La Increible y Triste Historia de la Cándida Eréndira y su Abuela Desalmada,Gabriel García Márquez

Pouco depois, o vento da sua desgraça meteu-se no quarto como uma manada de cães e tombou o candelabro contra as cortinas. Pág. 78, ed. Diário de Notícias, tradução cedida por Publicações Europa-América, Lda

Com o Puidgemont à espera que os Alemães o salvem da justiça espanhola, o Lula da Silva à espera de um milagre de dom Angélico Sândalo Bernardino, o Bruno de Carvalho à espera que o internem numa Casa de Saúde Mental, eu, que pensava que os homens se mediam pela capacidade de aceitarem os ditames da justiça, sinto-me perplexo com a tradução de «una manada de perros»...

A não ser que se trate de um exemplo de realismo mágico, creio que o termo espanhol 'manada' - rebanho de gado grosso (em port.)...- deve ser traduzido por 'matilha' - grupo de cães de caça; chusma de vadios; corja, súcia, malta...