15.6.21

Vida 'infraordinária'?

 

Por vezes, o equipamento urbano surpreende-nos: sentados, podemas carregar o telemovel, o laptop... 
Esta manhã, no entanto, observei algo muito distinto. O sem-abrigo aproximou-se do banco, abriu a sacola e dela retirou uma cafeteiria elétrica, um frasco de nescafé e uma chávena... Sem água, pegou na cafeteira e foi  a um bebedouro não muito distante, tendo regressado com o precioso liquido que, de imediato, fez aquecer... O que se seguiu todos podem imaginar... 
Mas faltava alguma coisa, provavelmente a carcaça, mesmo sem manteiga...
Os minutos seguintes, de chávena na mão, ocupou-os a vistoriar os caixotes de lixo sem grande sucesso.
Perante o previsível malogro matinal, alguém colocou sobre o banco um pão de deus e umas moedas... Quando se apercebeu da dávida, quardou recatamente as moedas no bolso e o pão na sacola, provavelmente já a pensar no almoço...
Entretanto, o 728 chegou e afastou-me daquele lugar, pensando eu que, afinal, os equipamentos urbanos podem ser mais do que sinais de ostentação...
Dizem-me que já começou o Hungria-Portugal! A verdade é que para mim começou bem mais cedo...

14.6.21

Escrita infraordinária

«E ainda pode escrever sobre o «infraordinário», aquilo que não é notícia.» Afonso Cruz, Jalan Jalan, pág.479

(Quem é que pode escrever? Todos. Não é necessário ser escritor, poeta, jornalista, historiador...)
Por exemplo, de momento, gostaria de escrever sobre Jalan Jalan, mas não é fácil.
 Não se trata de uma odisseia, embora refira múltiplas viagens, percursos. Não se trata de um romance, embora conte múltiplos episódios parcialmente narrativos, múltiplas experiências em lugares, por vezes, próximos... sobretudo distantes. Experiências enriquecedoras, porque fruto da atenção dada ao outro - geralmente com um ponto de vista inesperado e menos comprometido. Não se trata de um livro de auto-ajuda, embora o leitor se sinta frequentemente agradecido pelo incentivo, pela interpelação do lugar-comum...
Em síntese, este livro, inclassificável, resulta do cruzamento de leituras, de viagens, de experiências... e, em particular, de uma navegação orientada para a construção de uma humanidade melhor, com o precioso contributo do passado através da revisitação das ideias de todos os continentes...

(Caruma  é o típico exemplo de escrita infraordinária. )

12.6.21

Celebrar a morte!

 


Celebrar a morte, aborrece-me. A simples ideia de evocar acontecimentos de ontem perturba-me, como se  o dia de hoje estivesse suspenso... Enfim, celebrar  durante 5 anos assusta-me ainda mais, pois parece que, nos próximos anos, nada haverá a fazer,  exceto cumprir a liturgia que os apóstolos já começaram a desenhar...

Compreendo que haja uns tantos agradecidos e agraciados, mas não creio que este seja o melhor caminho. O que faz falta é mudar a agulha: substituir os frutos podres, podar a árvore, libertá-la do caruncho. E depois, quanto aos que não têm memória não vale a pena vaciná-los. O melhor é deixá-los construir as suas próprias memórias... e esperar que daqui uns anos não tenham a triste ideia de se quererem perpetuar nas gerações seguintes.

Finalmente, as celebrações são muitos caras... bem sei que vem aí bazuca, mas convém não esquecer que, por definição, a bazuca é uma arma cujo raio de destruição é elevado.

10.6.21

Milagres!


 Katja Ebstein, 1970

O postal está, há meses,  colocado à minha frente. Só que eu não o vejo ou, melhor, não o interrogo...

Até que, subitamente, os significantes começam a perturbar-me: - Como é que tu podes viver rodeado de signos que não compreendes? Deixa lá as pessoas e dá-nos um pouco mais de atenção... 

Em 1970, o mundo exterior era mesmo exterior, o festival da eurovisão pertencia a outro dimensão. À época, os milagres ainda eram esculpidos em retábulos a ouro ou em palavras de redenção.

(Hoje, ouvi o Jerónimo de Sousa afirmar que está preocupado com a entrega de dados de ativistas russos, residentes em Lisboa, à Mãe Rússia...)

 
Wunder gibt es immer wieder,
Heute oder morgen können sie gescheh'n.
Wunder gibt es immer wieder,
Wenn sie dir begegnen, musst du sie auch seh'n.

8.6.21

Quando o singular...

 

Quando o singular nos engana...

Ando a ler, mesmo se sentado, o livro de Afonso Cruz, Jalan Jalan, Uma leitura do Mundo...

Leio sentado, porque o livro é bem pesado e sentencioso. Para lá da suposta leitura, observo múltiplas leituras resultantes da estratégica mudança de ponto de vista, de modo a fugir à opinião e à crença...

Andar através dos livros, dos montes, dos territórios, das religiões, das filosofias, das políticas, das literaturas, das línguas é caminho de uma entropia crescente... volumosa, fragmentada, em que nos vamos dissolvendo de forma, por vezes, divertida porque inesperada.

5.6.21

Sem rebuço

Legítima? Ilegítima? Cultural? Não sei.
A apropriação surge a cada passo, com ou sem citação... como se as formas de intertextualidade fossem todas legítimas ou tivessem justificação cultural
Já não é tanto a ideia furtada, mas o manuseamento de múltiplos e exóticos significantes de modo a obter um efeito legitimador, gerador de saberes mal assimilados capazes de maravilhar as almas insignificantes a quem têm de prestar contas.
Quanto a mim, apenas pressinto que vou sendo assimilado, sem rebuço.
'Sem rebuço' seria um bom título para uma obra cujo significado não se descortina.

3.6.21

Coisas estranhas

 

Seres minúsculos só abrem as asas no momento de levantar voo, e e eu caço-os antes que me infestem a casa. Chegaram vindos não sei donde e multiplicam-se a uma velocidade estonteante...
No consultório, a conversa sábia esbarra nas janelas que dão para o Parque Eduardo VII. Os carros continuam a subir e a descer, alheios ao que ocorre na cabeça dos condutores e dos passageiros.
Vejo nos escaparates que vão publicando diários  esclarecedores sobre a vida nacional nas últimas décadas. Contudo, nunca explicam nada sobre os últimos dias.
Por exemplo, os diários são omissos quanto às razões do bombardeamento nocturno de Moscavide, em sonho já se vê! Seres minúsculos elevavam-se sobre a minha cabeça... e os mísseis iam caindo como se Israel estivesse a atacar a Faixa de Gaza.