27.4.10

O Gebo e a Sombra (peça de teatro)

I - Raúl Brandão, um dos homens da Seara Nova, 1923, procurou transmitir nas suas obras o ressentimento provocado pela mudança brutal que ocorreu na sociedade portuguesa depois da guerra (1914-1918): «Nunca se viram tão grandes fortunas – nunca se enriqueceu, como agora, de um dia para o outro.» (Memórias, vol.III, p.68.) Fizeram-se, de facto, fortunas. A Baixa de Lisboa foi ocupada por bancos e casas de câmbio. A riqueza tornou-se ofensiva como nunca o fora antes, por estar agora nas mãos de quem a não tivera desde sempre. Políticos e negociantes  vindos não se sabia de onde compravam rolls-royces e prédios nas Avenidas Novas. Ao mesmo tempo que os novos-ricos enchiam os teatros, cafés e casas de jogo, as velhas classes médias, colunas da respeitabilidade, sofriam nas garras da inflação (Brandão, Memórias, vol. III, p. 87). (…) O pior, como notava Brandão, eram as consequências éticas da nova nobreza: « Em que fundamentos ou em que lei moral hei de assentar a minha vida se, no fundo, bem no fundo, invejo os que triunfam?» (Memórias, vol. III, p.82.)  Rui Ramos, A Traição dos Intelectuais, História de Portugal, vol. VI (direcção de José Mattoso), p. 551
Na peça de teatro GEBO E A SOMBRA, Gebo, cobrador (e contabilista) honrado, cumpridor do seu dever, mas pobre, esconde da mulher, Doroteia, que o filho João (a Sombra), o rouba, isto é, rouba o patrão da Companhia Auxiliar, expondo-o para sempre à chacota social. No entanto, assume o ato infame do filho, passando três anos na cadeia. Perante as gritantes injustiças que vai testemunhando ao longo da vida, GEBO, objeto de escárnio de quem serve, acaba por se interrogar sobre uma questão que se torna nuclear: «O dever de um homem é ser justo e honrado ou enriquecer?»
Cumprida a pena, Gebo regressa a casa com o problema resolvido. Na prisão aprendera que «a gente só não se arrepende do mal que faz neste mundo
No essencial, esta peça não, apenas, nos ajuda a compreender o falhanço da 1ª República, como também o que tem vindo acontecer desde que entrámos na União Europeia. Tal como há 100 anos, os atuais novos-ricos não querem saber nem de honra nem de justiça; só o ENRIQUECIMENTO lhes interessa. Só a RIQUEZA os move.

II - «Primeiro a nossa casa hipotecada e vendida naquele ano em que estive desempregado, 1893 - data negra. Depois a desgraça do filho...» Raul Brandão, O Gebo e a Sombra, Primeiro Ato.
 
A minha interpretação de 27.04.2010 ignorou uma data que, hoje, considero fulcral: 1893. (Esta data é negra porque corresponde à bancarrota parcial de 1892-93. Neste último ano, a dívida pública atingiu 124,3% do PIB. E só em 1902, foi possível renegociar e contrair novo empréstimo amortizável a 99 anos - 1902-2001.)
 
Deste modo, a situação de miséria vivida pela maioria da população acentuou-se enquanto uma minoria, onzeneira, enriquecia a cada dia que passava - enriquecia com a miséria dos outros. Esta circunstância é, assim, fundamental para compreender "o teatro de ideias" de Raul Brandão.
De um lado, vemos o Gebo, honrado e cumpridor do dever, mas pobre e desprezado; do outro lado, o filho, o João ladrão, mas revoltado, para quem é preferível «antes morrer do que viver sepultado». A viver na rua (ou na prisão) durante 8 anos (1893-1901), João vai descobrindo que « há criminosos que têm alma e homens honrados que a não têm.» E acaba por ser ele que enuncia uma ideia, mais do que nunca, adequada aos anos que vivemos: UNS SÃO UNS TRAPOS, OUTROS REVOLTAM-SE.
No essencial, a família representa os "trapos" e João, "o revoltado". Mais do que um delinquente, João desestabiliza as consciências, a começar pela do pai, que resolve, depois de roubado e desonrado pelo filho, aliar-se-lhe, respondendo à pergunta de Sofia: «Neste mundo atroz, neste mundo onde não há a esperar piedade nem justiça, só os desgraçados é que têm de cumprir o seu dever?»
Em conclusão, nesta peça, o autor aplica o seu conceito de teatro: este «deveria debater um grande problema social ou psicológico, e interessar o público com "peças sintéticas" que fossem "populares e humanas".»
 

25.4.10

Luiz Pacheco no dia 25 de Abril de 1974

O meu 25 DE ABRIL
Estou na cama de manhã e aproveito para apontar na Agenda o tempo que passa. Tinha ficado na véspera em casa a rever provas. O puto fora para o liceu. Resolvo ir à rua beber uma cerveja e continuar a revisão. Ao pé do chafariz, o barbeiro atira com esta: «então, o Marcello e o Thomaz lá foram ao ar...» Não percebo logo. Nem acredito como. Mas ele confirma: a Emissora Nacional não funciona, só o Rádio Clube Português é que dá música e de vez em quando comunicados breves. Já mais convencido, convido-o logo a festejar na tasca da Laurentina que era para onde eu ia. E depois, ainda duvidoso, vou com ele à barbearia a ver se oiço algum comunicado. Música ligeira, sem nada de marcial. Canções populares portuguesas, pouco mais. (Até a Amália, parece-me!). Mas passados minutos um comunicado do Comando das Forças Armadas. Aí, adquiro a certeza que é, deverá ser a repetição do golpe das Caldas, mas com outra amplitude. Refere que o público tem ocorrido às lojas, em tentativas de açambarcamento, e manda fechar o comércio. Aconselha a população a manter-se nas suas casas e as forças militares e militarizadas a recolherem aos quartéis e não oferecerem resistência à tropa. A coisa é grave. Parece que não há comboios e para lá de Sete Rios não se passa. Tenho algum dinheiro e resolvo logo ir ver (foi o melhor que fiz: ver para crer). Desço acelerado e vou a casa do Fernando Paços, perguntar se ele sabe alguma coisa. Se sabe não diz. Mas confirma. Acompanho-o à farmácia de Queluz Ocidental e depois (ele aconselha-me que não vá a Lisboa, pois não conseguirei passar – mas eu conheço outro sítio para entrar, ou sair, da minha terra e caminho acelerado. Muitos carros, em fuga discreta?) para cá. Em Queluz, já vejo lojas fechadas, outras a fechar à pressa e uma data de tontos a abastecerem-se para o ano todo... oiço que um tal comprou mais de cem pães. Rica açorda (ou negócio) deve ter feito com eles. Cafés fechados. Há comboios. Meto-me num para a Amadora, depois sigo a pé. No Bairro do Bosque (sempre o intenso movimento de carros a saírem), ainda consigo meter um copo. Não há jornais. Rostos, com as janelas fechadas, assomem entre cortinas. Tudo me dá a ideia de receio (mas em Queluz vi alguns magalas a planar, o que me deixou intrigado). Venho a pé até às portas de Benfica e o ambiente é o mesmo: fila de carros a safarem-se, comércio encerrado, mulheres com sacos de plástico cheios, tensão. Meto-me num autocarro da Carris, de Benfica para o Chile e fico-me um tanto a rir do Paços, que em Lisboa e a andar para o centro já eu vou. No Chile, só uma taberna aberta: bebo mais um copo, estou nas lonas. Animação. Um tipo ao meu lado compra oito maços de Português Suave, também está a açambarcar ou a fumar aquilo diariamente habilita-se a um cancro nos pulmões em beleza e rápido. Aparece gente com jornais (A Capital) e sei que estão a vender para os lados do Império. Vou logo lá, sento-me num degrau e sei as primeiras notícias. Tá bem! Resolvo ir a casa do Henrique, ver se ele estará. Na Carlos Mardel, uma senhora num 1º andar pergunta-me onde vendem jornais. Digo e ofereço-lhe o meu. O marido, que vinha à rua, fica com ele e eu fico reduzido a 30$00. Começo com sede e angústias. Estou em jejum e já andei um bom bocado. Penso ainda ir ao Manaças (António) mas desde a última vez, desde a nossa última conversa, ele não me está a apetecer. E depois, o importante deve estar a acontecer na Baixa. Enfio ao Montecarlo (fechadíssimo) mas consigo topar um tipo a bater à porta da Mourisca (também fechada) e entrar. É que há gente. Vou, bato, o Costa Loiro está a forrar vidros por dentro com papel, talvez com receio dalgum obus. Peço-lhe vintes e ele despacha-me. Meto à Rua Viriato e vou até ao quartel de Santa Marta (todas as tascas fechadas até ali). Dá-me vontade de rir ver os cabeças de nabo reunidos lá dentro, a falarem uns com os outros (é que obedeceram às ordens?). Mas logo ao lado há uma tasca restaurante, porta meio aberta, com gente e muito movimento (guardas a beber, outro a telefonar para casa e sossegar a mulher (?), diz que não há azar). Bebo uma Sagres e como uma sandes. E avanço para a linha de fogo, que não sei onde é. Metros andados, ouvem-se ao longe tiros e rajadas de metralhadora. Tipos que fogem. Mas onde será o tiroteio? Como a coisa parou, continuo a andar. Até que encontro, já não sei onde, o Almeida Santos e um tipo que é revisor no Diário de Lisboa ou Popular, já não sei. Metemo-nos num táxi que sobe pela Calçada do Carmo. Mas logo populares avisam (ah, entretanto, perto do Tivoli, já tinha comprado um Diário de Notícias, com mais informes) que a rua está bloqueada. O carro faz marcha-atrás e mete (por onde?) para o Bairro Alto. Bebemos não sei o quê numa tasca, o revisor vai à vida, o Almeida Santos pira-se e eu avanço para os lados do Carmo. Na Rua da Misericórdia, muita gente, tropa e um tanque de respeito. Da janela da Redacção da República, o Vítor Direito e o Afonso Praça (aquele grita-me: «estás muito bonito hoje!», eu levava o sujíssimo albornoz que me deu o Artur), noutra varanda o Álvaro Belo Marques, a quem pergunto: «como é que se entra para aí?», porque a porta da escada da República está fechada. «Vai pelas traseiras!». Vou mas também está fechada e logo à esquina aparece um vendedor com a última da República. É um verdadeiro assalto. Aí fico a saber dos chefes (Costa Gomes e Spínola) e o alvoroço é enorme. Já não sei bem: se vim ao Rossio, se de repente notei uma grande correria para o Terreiro do Paço. Sem perceber nada do que se passa, sigo a onda. No Terreiro do Paço, começa a chover. Há correrias e encontro uma rapariga que me conhece muito bem mas não topo logo. É a Maria João, a engenheira química, amiga do Henrique, com outro rapaz. Ficámos abrigados da chuva debaixo das arcadas, depois convenço-os a irem beber um copo ao Terreiro do Trigo (Campo das Cebolas?), não sei já se estava aberto se não. Ela tem o carro no Camões e para aí vamos. Mas o Chiado está cheio de gente, que quer assaltar a Pide. Já não sei se ouvi tiros. Vi ainda as (uma?) ambulâncias, depois quase à porta da Brasileira um rapaz ou homem com a mão cheia de sangue (seco?), que tinha agarrado num rapaz ou rapariga. Começam a chegar fuzileiros, há mais correrias, a Maria João e o rapaz perderam-se de mim. Cheira-me que já chega. Agarro um táxi e arranco para casa da Ção. Pela TV vi depois o resto. Foi bonito e foi rápido. Já posso morrer mais descansadinho.
[Luiz Pacheco, in Diário Remendado, Dom Quixote, 2005]
Nota: No dia 29 de Abril, pela 17 horas, a Escola Secundária de Camões recordará o SER e o DIZER do antigo aluno, Luiz José Machado Gomes Guerreiro  Pacheco(1925-2008).

19.4.10

Art Research de Jorge Castanho…

 No 58 B da Rua dos Navegantes (Lisboa) é, agora, possível ver, em suporte material, a Fábrica de Anatomias que o Jorge vem disponibilizando online desde Setembro de 2008. Numa visão clássica mitigada, o primitivo (o mitológico) acorda em mim o movimento dos fantasmas que, outrora, habitavam as minhas horas… É com surpresa que acolho a paciência e o rigor do artista que ousa entrar em espaços que eu preferi desertar…

Espero que o Jorge não leve estas palavras a sério, porque, como ele ontem me disse, quem escreve vê sempre as coisas de um modo diverso… O escolho, no meu caso, está de tal modo escondido que as coisas se me escapam antes que as possa reter. E, ao contrário, o Jorge fixa a “res”, mesmo que ela insista em transfigurar-se…

18.4.10

Robert Longo, Freud's Desk and Chair, Study Room

Confesso que a exposição ‘Robert Longo - Uma Retrospectiva’, no Museu Colecção Berardo, me impressionou ao ponto de procurar mais informação sobre o artista norte-americano, nascido em 1953. E encontrei o sombrio gabinete onde Freud secava as almas dos seus pacientes. A secretária é me familiar; a cadeira lembra-me uma sentença de morte : http://www.artnet.com/awc/robert-longo.html

Ao lado, o gigantismo e o colorido de Joana Vasconcelos surpreendem. Mas só isso! Um pouco, como se estivesse de regresso ao séc.XVII: o deslumbramento é efémero…

17.4.10

Eyjafjallajokull…

Diversões é título da crónica de Filipe Nunes Vicente (Revista Ler 2010). Para quem não tenha tempo para ler os Pensamentos de Pascal ou as meditações de Freud, designadamente O Mal-Estar na Cultura, vale a pena reflectir sobre os exemplos do Dinis e do Rúben, sobre o modo como ocupam o tempo… «as grandes diversões, paulatinamente, assumem o papel anteriormente exercido pelos narcóticos: tornam-nos indiferentes às limitações da vida.»
Será a natureza (tropical ou vulcânica) capaz de nos fazer sobressaltar? Agora é que o TGV vinha a calhar!

14.4.10

Santos do pé-da-porta

 ... não fazem milagres
Colega de José Cardoso Pires e de Luiz Pacheco no Liceu Camões, Jaime Salazar Sampaio morreu, aqui, ao lado, sem que o tenhamos convocado…
Jaime Salazar Sampaio (Lisboa, 5.5.1925-13.4.2010). Obra: Teatro Completo 1997; Aproximação (1945[1]); O Pescador à Linha (1961)[2]; Os Visigodos (1968); Junto ao Poço (1971); A inauguração da estátua (1974); Conceição ou O crime Perfeito(1979)[3]; Desconcerto (1980); Fernando (Talvez) Pessoa (1982); Magdalena Lê Uma Carta (1984); Olá, Fernando (1988). Poesia: Em Rodagem, 1949; Poemas Propostos (1954); Palavras para um Livro de Versos; O Silêncio de um Homem; O Viajante Imóvel (1979); O Poço (nota incompleta)

[1] - Editada pelo autor e por Luiz Pacheco
[2] - Quando vi Beckett, achei que era tudo o que me faltava para saber o que era o teatro (…) A sua influência na minha escrita é inegável. Ver Entrevista ao Expresso, 6 de Dezembro de 1997.
[3] - Um dramaturgo de mulheres?

12.4.10

A caça e a retórica da masculinidade…

«Essas pessoas não sabem o que é o marialvismo. Eu sou um antimiguelista profundo. O marialvismo vem de D. Miguel. (…) Há muita gente profundamente antimarialva que gosta de touros e que gosta de caça. De resto, eu acho que tudo nasceu da caça. Tudo. A começar pela poesia. Tudo nasceu da caça.» (Revista Ler, Abril 2010, pág. 36.)

«Já fora do terreno, apercebi-me de que o tema do marialvismo surge como recurso retórico central em três outros universos discursivos e/ou performativos: no fado, recentemente construído como “forma musical nacional” mas na realidade surgido nas classes populares de Lisboa e apropriado pela aristocracia; na tourada e no mundo tauromáquico; e em discursos de mitologia política sobre a “alma nacional”, em tomo do tema do Sebastianismo e da Saudade.Em todos estes campos, um traço comum: encontram-se par a par dois extremos da hierarquia social: na tourada, a aristocracia dos cavaleiros e a plebe dos forcados; no
fado, a aristocracia boémia atraída pelo exótico e o lumpen proletariado urbano; no saudosismo-sebastianismo, as figuras mitológicas de reis divinamente inspirados lado a lado com uma Nação composta de camponeses. A figura do Marialva, a do fadista, a do rei providencial, a do cavaleiro, são protótipos de masculinidade: compõem-se, mais do que por oposição ao feminino, por oposição a uma “falta” de masculinidade na burguesia, na intelectualidade, na modernidade; e discursam sobre contradições dinâmicas da masculinidade ideal: entre a valentia e o deboche, entre a nobreza e a pulsão dos instintos.»
(Miguel Vale de Almeida, Marialvismo)

O escritor (José Cardoso Pires) define-o mais lapidarmente: o marialva é um indivíduo interessado num tipo de economia e política assentes no irracionalismo. (Miguel Vale de Almeida, Marialvismo)

Por mais que o Escritor pense que é um antimarialva convicto, talvez valha a pena reler e repensar a obra de Manuel Alegre, pois o homem que já tem uma cátedra na Universidade de Pádua  não descura a hipótese de ter outra em Belém.