14.2.14

Manda quem pode!

Manda quem pode, obedece quem quer!

Este provérbio é expressão do saber popular. Todavia, nos dias que correm, parece que já só aplicamos a primeira parte. Logo pela manhã, passou por mim, com ar desalentado, uma senhora que exclamava: Manda quem pode!

De facto, todos os dias obedecemos não porque queremos, mas porque nos resignamos….

Até na natureza, a figueira, de judas ou não, obedece, apesar da chuva e do dia de cinza. Esta figueira, porém, salta o muro e foge do terreiro do seminário, mesmo que a espere a mão gulosa e o riso mofino.

13.2.14

O polvo prega, comunga e condena à fogueira

I – O planeamento e a agricultura de mãos dadas! Não posso deixar de admirar a comunhão das malvas com as favas…
II – Entretanto, «o polvo vestiu-se de todas aquelas cores a que está apegado» e foi comungar. Será que se confessou?

III – «O polvo, com aquele seu capelo na cabeça parece um monge; com aqueles seus raios estendidos, parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma mansidão. (…) O polvo é o maior traidor do mar.» Padre António Vieira, O Sermão de Santo António.
O polvo de Vieira é o dominicano que, morto D. João IV (1656), o persegue e o manda prender. O traidor dominicano, responsável pelo tribunal da Inquisição, que abraçou a Cristo e o prendeu…
Curiosamente,  tendo o Sermão de Santo António sido proferido no dia 13 de junho de 1654, os estudiosos de Vieira não identificam os pregadores que não salgavam a terra com a ordem dos dominicanos, cuja missão principal era pregar e, sobretudo, não veem no polvo o retrato do principal inimigo político de Vieira – o dominicano.
Provavelmente, no sermão pregado em 1654, no Maranhão,Vieira não terá feito qualquer referência à figura alegórica do polvo-traidor que só montou o auto-de-fé depois da morte de D. João IV. Apenas, quando estabeleceu o texto para publicação, Vieira terá introduzido «o salteador, que está de emboscada dentro do seu próprio engano…»

12.2.14

E para isso se matam todo o ano!

Todos a trabalhar toda a vida, ou na roça ou na cana, ou no engenho ou no tabacal; e este trabalho de toda a vida, quem o leva? Não o levam os coches, nem as liteiras, nem os cavalos, nem os escudeiros, nem os pajens, nem os lacaios, nem as tapeçarias, nem as pinturas, nem as baixelas, nem as jóias. Pois em que se vai e despende toda a vida? No triste farrapo com que saem à rua. E para isso se matam todo o ano! Padre António Vieira, Sermão de Santo António aos Peixes

No dia em que tomei conhecimento de um novo decreto-lei, o nº 22/2014, de 11 de fevereiro, que visa enquadrar e regulamentar a "formação contínua de professores" tive necessidade de explicar aos meus alunos que o Padre António Vieira utilizou o sermão para defender os moradores do Maranhão do apetite voraz dos "homens do mar", um insaciável apetite branco europeu. De forma lúcida, António Vieira denunciou a ação das ordens militares, fossem elas de malta, de avis, de cristo ou de santiago. Sem qualquer tibieza, Vieira denunciou a cultura de morte que caracterizou o espírito de cruzada e de posterior conquista do novo mundo. 
A permanente preocupação com as condições de vida do homem tornam Vieira um verdadeiro precursor de todos aqueles que se empenham na defesa dos direitos humanos.
Se me refiro ao decreto-lei 22/2014 de 11 de fevereiro e a Vieira é porque no ato governativo, subscrito por Nuno Crato e Passos Coelho, nada encontro que  possa ajudar os professores a educar os seus jovens alunos. Não é com burocracia, catecismo, manual de instruções, formadores de formadores ad hoc, sessões de três e seis horas, que se aprende, que se aprofunda o que há de essencial na cultura humana...
Se os governantes tivessem aprendido a ler o Padre António Vieira não haveria tanta ignorância, tanta cegueira, tanta vaidade, tanta cobiça... tanto homem «no triste farrapo com que saem à rua».
  

11.2.14

Um retrato patético

Para mim, não há inverno sem chuva ininterrupta. Hoje, sim, choveu de forma persistente, quase sem intervalos... O vento e o frio são apenas acessórios!
A chuva traz-me esperança de renovação, a vida no estado puro. Sempre que sinto a chuva, acredito que o mundo pode ser melhor, reduzir a fome, secar a guerra.
Bem sei que esta emoção só é partilhada por quem habita os desertos áridos, abandonados pelos rios exauridos pelo sol... e, no entanto, oiço com atenção todos aqueles que se queixam da chuva e têm pressa de libertar-se  dela, como se ela fosse  fonte de morte. Oiço-os sonhar com a areia da praia sob a canícula doirada e vou pensando como podemos ser mal agradecidos. Queremos a vida e vivemos na demanda da morte!
A ideia pode ser arguta, mas o que eu queria dizer era coisa diferente! É que, apesar da chuva, fonte de vida, sinto-me empurrado para a idiotia ou, em alternativa, para o silêncio absurdo. Suspeito de mim mesmo, vigio os meus gestos, peso as palavras e ainda peço desculpa pelo incómodo da minha presença. E já não preciso que me deem um empurrãozinho... Em dia de chuva, eis um retrato patético!

 (A nau da Governação leva a bordo Cila e Caríbdis, empurrada por uma multidão de patetas! O que será feito de Zeus?)     

10.2.14

A nau Governação

«Quantos, na nau Sensualidade, se iriam perder cegamente em Cila ou em Caríbdis, se a rémora da língua de Santo António os não contivesse (...)?» Padre António Vieira

Não é que a nau Sensualidade tenha deixado de ser um problema, mas o que hoje mais preocupa é a nau Governação.
À abordagem cognitiva, há quem prefira a abordagem alegórica, por isso convém esclarecer a interessante figura criada em torno de Caríbdis e de Cila.
Caríbdis e Cila revelaram-se inicialmente como ninfas, porém acabaram transformadas em vorazes monstros marinhos, zelosos defensores das fronteiras marítimas, deixando uma figueira negra ao homem como única escapatória.
Vale a pena relembrar que o monstro Cila, anteriormente ninfa, continua a apresentar o torso de uma bela mulher, cuja cintura é cingida por seis cabeças de serpente com três fileiras de dentes e por um círculo de doze mastins ...
Como a compreensão da alegoria exige a colaboração do interlocutor, abstenho-me de explicar quem vai na Nau da Governação, apesar de adiantar que Cila e Caríbdis, desta vez, se encontram a bordo... 

9.2.14

Tempestade mental

Acordei um pouco mais tarde, talvez porque tenha adormecido a pensar que Camilo Castelo Branco fora um homem pouco escrupuloso no que às mulheres respeita, apesar da glória literária de que ainda se alimenta. A glória pode, assim, alimentar-se da borracha que vai apagando a biografia, substituindo-a pela cristalização. O mito.
Hoje, a falta de escrúpulos generalizou-se e não há dique que a trave.
Entretanto, fui acometido por uma reflexão, até ao momento, inconsequente: a relação entre a sensação e o sentimento. Seguro de que a sensação não pede autorização para se instalar, sei, contudo, que ela é efémera, vaidosa, excessiva quando se proclama doce ou amarga, gélida ou em fogo. A sensação mais não é que paixão... e esta dura o tempo da sensação ou não sobrevive sem repetição.
Quanto ao sentimento, um pouco além da emoção, pode durar para além da sensação, pode viver da repetição e sobretudo da prisão voluntária ou não. E na verdade, o pensamento matinal embrenhou-se na duração do sentimento, no apagamento do sentimento, nas condições em que o sentimento desfalece...
E aí a morte do objeto e a cegueira progressiva do sujeito acabam por diluir o sentimento até à sensação de vazio que solicita que o lugar seja preenchido...

8.2.14

Mesmo se ao lado do risco…



Não penso (…) existo mesmo se ao lado do risco … Há um risco humano e outro vegetal, talvez apenas reflexo, não sei ao certo….
A incerteza escolhe a dúvida e eu não resisto a seguir-lhe o traço. Poderia inventar-lhe um passado, dar-lhe um sorriso, deixá-lo morrer, mas para quê? Nomes, praças, estátuas, pombas, gaivotas, esteiros – tanta história já narrada e esquecida!
E no meio relembro aquele impiedoso aluno que me questiona: – Para que diabo escolheu ser professor (executante de manuais) se poderia ter sido tanta outra coisa mais útil na vida?
O que o jovem ainda não sabe é que ao ter razão não irá gostar da minha resposta. E eu também não!