14.3.15

A última viagem

Passo imensas horas a tentar descodificar tortuosas e minúsculas caligrafias. Por vezes, para além de introvertidas, estas caligrafias são expressão de manifesta esquizofrenia... 
E à horrível caligrafia, há que acrescentar uma sintaxe desconexa, resultante não só da dificuldade em coordenar e hierarquizar ideias, mas, sobretudo, de memorização de última hora, apressada e, consequentemente, descontextualizada.
Das palavras e das ideias, é melhor nada dizer ou, em alternativa, substitui-las por EU.

Há por aí quem defenda a leitura global, capaz de estabelecer ligações entre diferentes épocas e o presente do leitor, sem que este tenha de aprender a interpretar de per si cada texto, cada época. Trata-se de aprender a ler, sem aparato, como aqueles turistas que viajam sem bagagem. Basta-lhes o cartão de crédito para pôr cobro a qualquer dificuldade que possa surgir...
Se este for o caminho, a escrita também passará a ser global, semafórica, se tal palavra existe...

De mal ficaria comigo, se aqui não confessasse que a culpa de tudo isto é da velocidade e do ruído... Claro que um dia todos viajaremos sem aparato, a não ser que alguém acene por nós com o cartão de crédito, para gáudio do barqueiro... 

13.3.15

Por decisão da Conveniência

O cidadão comum pode errar, o governante não!
Este é um argumento que vai fazendo o seu caminho para defesa da classe política. Isto é, suspenda-se autópsia do homem de estado, porque não é da natureza do exercício do poder corromper nem deixar-se corromper e, portanto, o melhor é não mexer no passado porque, no que para trás ficou, não haverá cidadão impoluto. 
Todo o cidadão se esqueceu, uma manhã ou uma tarde, de pagar uma multa, de declarar ao fisco uma remuneração ou até de comprar ou vender um qualquer móvel ou imóvel por um preço combinado para efeitos de declaração...
O melhor é não meter as mãos na lama em que vivemos atolados! Se por um qualquer bambúrrio do destino, formos eleitos ou mesmo nomeados para um cargo público, esse passado, por decisão da Conveniência deve ser esquecido até que o mesmo destino se encarregue de nos devolver ao charco em que habitualmente chafurdamos -  o charco dos homens imperfeitos... 
Nesse dia, poderemos ser detidos para que se faça a prova material. E aguardar o tempo que for conveniente...

12.3.15

Parecemos grandes...

"Inutilmente parecemos grandes." Ricardo Reis

Falamos mais alto, mandamos calar. Senhores da palavra, derrubamos a torto e a direito... só porque o castelo parece nos aguardar no cimo da vaidade...
Não fosse o nevoeiro, o castelo não nos escaparia!
O problema não é tanto a vida que levamos mas aquela que imaginamos como nossa, assente na areia que a maré move a seu belo prazer...

De qualquer modo, insistimos em construir castelos na areia, mesmo quando o mar avança. 
E quando a onda quebra o espelho, compramos um novo ainda maior...e colocamo-lo ao cimo da escadaria.
Só que lá as línguas confundem-se e ficamos a falar sozinhos. Tal como eu!

11.3.15

Paradoxo

Hoje, tantas foram as tarefas, tão absorventes e tão inócuas que, para registo, nada sobra, a não ser aquela entrada na travessa do boqueirão da qual me vi obrigado a sair de marcha atrás...
Claro que também poderia aqui registar a história daqueles seres maviosos que insistem em mostrar que estão ativos e que a vida existe para além da encenação diária, sem falar dos outros que ignoram por inteiro o significado de termos como 'garrote franquista' 'discricionário', 'belicoso', 'complacente'...
Vou ficar por aqui, porque, se continuo, deixo de ser complacente e acabarão por acusar-me de belicoso e merecedor de um qualquer garrote seja ele de Franco, de Putin ou do Estado Islâmico, sem esquecer os restantes ditadores, passados e futuros... 

10.3.15

Debalde, fujo da anacronia...

«Passamos e agitamo-nos debalde.» Ricardo Reis

Quando menos esperava, fui interpelado por causa do significado de 'debalde'. Pensava eu que o termo seria comum! E para minha maior surpresa, também, no mesmo contexto, surgiu a dúvida sobre o significado de 'anacrónico'.
De imediato, conclui que o advérbio 'debalde" será atualmente  'anacrónico'. Mas será só isso? Talvez, mesmo sem de tal terem consciência, os meus interlocutores  tenham optado pelo caminho mais fácil, preferindo a modorra dos dias... a qualquer esforço. Uma das vítimas dessa apatia é a língua portuguesa, cada vez mais maltratada. 
A leitura tornou-se um fardo, e a consulta do dicionário, uma maçada... Por exemplo, ler 30 linhas do Discurso da Guarda (1977), de Jorge de Sena, deixa de rastos qualquer finalista do ensino secundário...
Para terminar, lá tive que explicar que não passo de um professor anacrónico. Debalde!

9.3.15

De regresso a Mafra

Quase todos os anos, visito Mafra no âmbito do estudo do romance Memorial do Convento. A visita de hoje terá sido a última!
A sensação que me fica, no entanto, é a de sempre: uma vila em que o ordenamento do território mistura o rústico com o urbano, ou melhor, em que a construção dos interesses do "psd" foi destruindo a paisagem rural, sob o efeito oceânico.
No longínquo ano letivo de 1977/78, lecionei na antiga escola de Mafra. À época a relação com o Convento era mínima - era uma presença imponente, filha de um rei hipocondríaco e megalómano, oficialmente catolicíssimo e magnânimo, que tinha desbaratado o ouro do Brasil e espezinhado o povo... 
Era um tempo de feroz luta política entre o "psd" e o "pcp", como nunca encontrei em qualquer outra escola. O "psd" ganhou, transformando o concelho num feudo alimentado pelo "ouro" da Europa, havendo mesmo tempo em que o Convento se tornou em arma de arremesso político, quando José Saramago ousou pôr a nu o desvario de D. João V..., mas rapidamente o Convento se tornou na galinha de ovos de ouro local, por conta das centenas de milhares de alunos que ali rumaram, embora muitas vezes o fizessem a contragosto, sem esquecer os milhares de estrangeiros que se deslocaram a Mafra não porque D. João V tivesse mandado construir o Convento, mas porque Saramago escreveu o Memorial do Convento...
Hoje, regressei a Mafra. No essencial, a riqueza não eliminou a pobreza. O Convento dá sinais de falta de obras de manutenção; fico até com a sensação de que há peças que desapareceram e que outras surgem ali como se tratasse de um quarto de arrumos. A visita cobre cada vez menos aposentos, havendo espaços fechados que, se estivessem abertos, nos dariam outra visão do edifício e dos arredores... e os alunos, hoje, mostraram-se muito interessados nos morcegos, quando, outrora, o fascínio se centrava nos ratos que engoliam soldados, livrando-os de partir para as áfricas, perdidos os brasis e as índias...      

8.3.15

Estou sem palavras!

E parece que vou continuar assim por uns tempos. É a melhor estratégia, quando as palavras se atropelam em formas assassinas e nos arrasam as conexões...
Ou tudo se dilui ou as palavras ganham corpo e arrasam-nos a alma...