17.10.15

Fora de nós...

Quando o corpo deixa de estar presente nos lugares de rotina, a voz ausenta-se e a manhã acorda de forma estranha. As árvores inermes registam um sopro deliquescente.
(...)
Aos poucos, a manhã regressa ao normal com outros corpos presentes; outras vozes porosas elevam-se e atravessam as árvores em salvas retumbantes.
(...) 
Fora de nós, a luz incendeia os corpos e, mesmo sem voz, a vida escorre... Entretanto, o tempo desfaz o calendário, porque o corpo deixou de estar presente nos lugares de rotina. 

16.10.15

Alexandre Quintanilha na Escola Secundária de Camões

"Take care of freedom and truth wil take care of itself." Richard Rorty, 2007 / Cuida bem da liberdade e a verdade vencerá.

No dia do centésimo sexto aniversário do Liceu Camões, o Professor Doutor Alexandre Quintanilha proferiu, no  Auditório 'Camões', uma conferência sobre "O conhecimento: para que serve?" ou , numa perspetiva mais especializada, "Neuropotenciação e os desafios do "melhoramento humano". 
De forma clara e concisa, combinando o registo técnico com o registo corrente, Alexandre Quintanilha soube explicar a uma assembleia maioritariamente constituída por jovens, os desafios que a ciência e a tecnologia, em particular, no âmbito da saúde, colocam  quanto à possibilidade de "promover / capacitar o bem-estar humano", alterando o ambiente "natural", o ambiente "social", o "estado cerebral" e a biologia. 
Creio que grande parte do sucesso desta conferência deve atribuir-se à pertinência e à qualidade dos exemplos e, particularmente, à capacidade argumentativa, eivada de uma fina ironia, como quando o orador fundamentou algumas ideias: "somos mais filhos da mãe do que do pai" e "toda a medicina é contra a natureza" ou, ainda, se referiu ao tema do 'risco', opondo os conservadores aos mais ousados...
Finalmente, numa abordagem ética e verdadeiramente humanista, Alexandre Quintanilha mostrou que as ciências estão ao serviço do "melhoramento humano", apesar do risco de, em sociedades que desprezam a democracia, a ciência ser colocada ao serviço do "mal".

15.10.15

Na Pasmaceira

«O Pasmado estava ali porque ali deviam cruzar os comboios. Tudo o mais, entrementes, conspirava contra a sua existência. A aridez, o turbilhonar constante das brisas, o isolamento, uma como tenebridade paisagística especial, e também, justo é dizê-lo, a crença de que o sítio era corte de fantasmas e campo não sei de que espíritos de velhos guerreiros de outros tempos (que ali se teriam defrontado e mutuamente vencido) fazia do arredor paragem indesejável - onde só por obrigação se passava, ou ia, ou ficava.» A. Rego Cabral, Tundavala, A Oeste de Cassinga, pág. 270, Sociedade de Expansão Cultural, Lisboa.

Este é um romance do tempo em que os engenheiros ousavam enfrentar o anátema que os condenava à redação de monografias e relatórios. A literatura era, em Portugal, uma coutada reservada aos juristas, médicos e diletantes.
Um romance de um engenheiro que defendia que a técnica era a alavanca do mundo e, em particular, do mundo português em Angola. Sem a engenharia, o desenvolvimento do território ficaria nas mãos de decisores letrados, mas ociosos... 
A pasmaceira era o estado de alma dominante. 
Infelizmente, entre os políticos, poucos eram os engenheiros verdadeiramente empreendedores. E quando surgia algum, a cáfila, que geria as finanças públicas e impunha a filosofia do espírito, acabava por ostracizá-los...
Na pasmaceira até a guerra era preferível à engenharia, ao desenvolvimento, à atividade produtiva.

Neste romance, o Pasmado é apenas uma estação de caminho de ferro, isolada num território hostil, mas fundamental para o escoamento do minério. Na Pasmaceira atual, a cáfila que gere a res publica encerra e desmantela tudo, em nome do eurismo - uma filosofia cujo espírito está cunhado no euro.
Neste romance, os heróis são os engenheiros, os técnicos, os trabalhadores.. 

14.10.15

Assim estamos nós!

Cresci, por um tempo, num lugar onde o galinheiro não se misturava com a coelheira, pelo menos na hora da deita.
Depois de tanto tempo a separar as espécies, chegou a hora da miscigenação - o que me parece de grande sensatez, até porque nunca entendi a razão de ser das fronteiras, dos muros, do arame farpado...
Há, no entanto, um problema, uma maldição divina! Por mais que finjam, não falam a mesma linguagem, embora tenham o mesmo objetivo: conquistar ou manter o poder.
Recordo ainda o tempo em que, não muito longe do galinheiro e da coelheira, havia uma pocilga sem grande expressão - uma pocilga doméstica. A espécie que lá vivia não era esquisita. Comia tudo o que lhe fosse colocado à frente.

Assim estamos nós! Parece que alguém abriu arca e soltou a besta que nos habita... e a Babel pouco mais é do que um perímetro doméstico, repleto de ruínas... 

13.10.15

As três fontes do sofrimento

«O sofrimento nos ameaça a partir de três direcções: de nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com os outros homens. O sofrimento que provém dessa última fonte talvez nos seja mais penoso do que qualquer outro.»

Dito de outro modo:

«Já demos a resposta pela indicação das três fontes de que nosso sofrimento provém: o poder superior da natureza, a fragilidade dos nossos próprios corpos e a inadequação das regras que procuram ajustar os relacionamentos mútuos dos seres humanos na família, no Estado e na sociedade.»
                               Sigmund Freud, O Mal-Estar na Civilização, pág. 25 e pág. 37, Imago editora, 2002.

Sempre que encontramos um amigo, um conhecido, lá surge a pergunta: - Como é que vai? E a inevitável resposta: - Vamos andando...
No entanto, a cortesia, nas reticências, acaba por deixar escapar um sinal de desilusão. De perda! 
De perda da juventude e da saúde, de isolamento na natureza indiferente e, por vezes, hostil. E, sobretudo, de vazio porque a sociedade em que vivemos deixou de valorizar o trabalho, a experiência e o conhecimento.
A sociedade já não é constituída por pessoas, mas por números. Por símbolos sem referência, e como tal somos pessoas descartáveis.


12.10.15

Arrumar o PS de fora para dentro...

Compreendo que o António Costa fuja da direita como o diabo da Cruz. Também compreendo que queira meter no bolso o Bloco e o PC, embora a esperteza me pareça sórdida e perigosa. Só não entendo que queira arrumar o PS de fora para dentro!

Lembra aqueles generais que só invadindo território estrangeiro alcançaram a Fama, mas que, feitas as contas, destruíram mais do que construíram.

Infelizmente, neste sorumbático país, os líderes partidários continuam a agir não em nome do bem comum, mas do vil interesse...

11.10.15

Não me sinto abolfeta (resgatado)

Quando o tempo começa a faltar, há quem decida dedicar-se a tarefas improváveis e inúteis. Por exemplo, construir uma base de dados pessoal - catálogo de existências bibliográficas - o que me transforma num manuseador do pano do pó e num ordenador de espécies que andavam à deriva...

No meu caso, para além da morosidade da tarefa, sinto que estou numa fase de revisitação de autores, obras, editores... e até de descoberta de existências inesperadas que me dão conta da fragilidade da memória, apesar de Freud ensinar que o nosso cérebro nada esquece: é preciso é escavar um pouco, como acontece em qualquer cidade antiga... Deitamos um tabique abaixo e logo surgem vestígios da cidade de outro(s) tempo(s)...
Concluído o registo 1067, abro o Vocabulário Português de Origem Árabe, de José Pedro Machado, percorro verbete a verbete, cada vez mais ciente de que temos andado a branquear as raízes árabes, e aterro no termo ABOLFETA: antr. que ocorre em documento de 1025 (Dipl.,pág.159). Do ár. abū-l-fidā, à letra, «Pai do resgate», isto é «o resgatado».

Confirmo, assim, que o resgate é também ele coisa antiga, anterior ao tempo dos cativos mais famosos, como, por exemplo, o Infante Santo. E, sobretudo, infiro que nem sempre o «pai do resgate» coincide com «o resgatado», embora devesse...
Parece que andamos esquecidos que pouco temos feito para pagar o resgate, ao contrário, por exemplo, dos islandeses que já se viram livres do FMI.