21.5.06

Alcácer do Sal, em Maio...


Bucólica localidade, onde múltiplos pequenos pássaros saltitam e chilreiam agradavelmente. As cegonhas brancas estão presentes um pouco por toda a parte e, nesta fase do ano, já terão começado a alimentar os juvenis, o que explica que, quando nos aproximamos, elas emitam um estranho e seco som de alerta...
Esta vida campestre, onde, hoje, ecoam os badalos dos rebanhos, é cingida por um extenso mosaico de águas rasteiras, que esperam o cultivo da oriza sativa (variedade de arroz oriundo da Ásia)... ou, em alternativa, a salinação.
A cidade de Alcácer, um pouco esquecida do passado, tranformou a fortaleza numa pousada e, presentemente, expande-se para a Nova Alcácer num estilo novo-rico, descurando a possibilidade de se transformar numa extraordinário miradouro sobre o Sado.
Apesar disso, há nela uma nítida preocupação com os equipamentos sociais, mas tudo num ordenamento bem desordenado.
No entanto, vale a pena visitar a bela igreja de Santiago, rica em azulejos com motivos locais, e algumas das capelas laterais ricamente decoradas. Este edifício foi inaugurado em 1746, no reinado do magnânimo D. João V. E também por aqui há um Convento de S. Francisco!
Em Maio, ficamos com a sensação de que a qualquer momento tudo pode mudar ... tal como na Carrasqueira, a cerca de 20 km de Alcácer do Sal. Fica a sensação de que nesta altura do ano, ainda tudo está por acontecer... embora este fim-de-semana tenha sido bem agradável no renovado parque de campismo... sem residentes e procurado, sobretudo, por ingleses e holandeses. Quem diria?

19.5.06

Esta pressa de florescer...

Floriram por engano as rosas bravas
No Inverno: veio o vento desfolhá-las...
Camilo Pessanha
Mágoa mitigada
As rosadas pétalas murcham diante dos meus olhos; não esperam nem pela calma do Estio nem pelas chuvas do Inverno. Têm pressa de viver: inquietas, riem muito, trocam olhares furtivos, fingem preocupações; mas lá no âmago esperam ansiosamente que o gongue se faça ouvir ... para suavemente juncarem o solo da alheia caminhada.
E esta pressa de florescer não lhes deixa tempo para aprender!

18.5.06

Gigantes ou anões...

O eterno problema da fronteira
Levámos três séculos a construir a fronteira continental.
Levámos outro século a expandi-la.
Ficámos três séculos e meio a defender a nova fronteira. A cada investida do castelhano, do muçulmano, do otomano, do holandês, do francês, do belga, do alemão, do italiano, do inglês, do russo, do chinês, do americano, do indonésio, retraiu-se a fronteira...
Sacrificámos fazenda, homens, mulheres e crianças e, em nome da divina fronteira ou da fronteira divina, chacinámos outros homens, outras mulheres, outras crianças...
E regressámos ao torrão natal como se nada se tivesse passado... a nossa nova fronteira fora sacrificada em nome da emancipação dos povos, do direito que todos os povos reivindicam de ter o seu torrão original.
Hoje, para deixar que o tempo continue a fluir, fazemos parte da nova fronteira europeia... deixámos de ser o rosto que fitava o atlântico e passámos a ser uma cloaca transfronteiriça, à nossa maneira, temperada de lusofonia...
Defendemos acerrimamente o castelo sem castelão, a paróquia sem pároco, o hospital sem médico nem utente, a câmara sem munícipes, a escola sem estudantes, a caserna sem soldados... e estamos dispostos a não arredar pé em nome da nossa última fronteira... afinal, aquela que nunca conseguimos fixar.
E porquê? Porque nos falta o sentido das proporções - Gigantes ou anões...

17.5.06

- Pode ser a sombra de um fulgor!

Palavras afogueadas regressam quebradas de estupor Múrmuras ecoam prantos de dor Cansadas as palavras anoitecem à espera de um rumor - Pode ser a sombra de um fulgor!

15.5.06

Estaremos, de facto, a digitar?

Às nove horas, em Miraflores: a classe média, mansamente sentada, espera o momento redentor da análise... e eu, com a cabeça num tinteiro HP21, procuro-o numa rua, onde o lojista há muito desistiu de o vender.
Às 10 horas, no Colombo: encontro o desejado tinteiro, mas fico preso na caixa... uma expedita funcionária telefonava para um lugar aonde outro expedito funcionário deveria ter chegado.
Às 12:30, nos CTT de Torres Novas: 22 outras pessoas esperam pacientemente à minha frente, para pagar as contas da água, da luz e, sobretudo, para receber a pensão. Lentamente, olham para os relógios e para os rostos sombrios dos vizinhos, na expectativa de que falte alguém.
Às 13:30, nos CTT de Torres Novas: sou atendido.
Um acto simples: Para reencaminhar o correio, bastou preencher um impresso, no balcão ao lado, apresentar uma certidão de óbito de um obstinado mensageiro, mostrar uma procuração de..., ouvir a funcionária perguntar se não havia, de facto, alguém que passasse a levantar o correio porque «só os próprios é que poderiam reencaminhar o correio», refutar os argumentos aduzidos; fotocopiar numa secção interior os documentos carreados para um hipotético processo; digitar os dados que eu acabara de registar manualmente no impresso, passar um cheque de 67,20 € - nos CTT não há multibanco!-, esperar que simpaticamente a funcionária me devolvesse uma cópia do meu impresso e digitasse demoradamente um recibo... Sorrir de agradecimento e sair às 14:15 da estação dos CTT de Torres Novas...
Às 15:00, no Lar: Uns parecem não saber o que estão ali a fazer; outros não sabem explicar aquele braço inchado, aqueles dedos pisados... aconteceu de manhã, talvez às 9:00, num turno de que já não há memória... fico ali até às 16:00, à procura de palavras que me permitam uma aproximação a um tempo «felizmente bem diferente deste, onde não havia esta degradação». Infelizmente, não as encontro e saio, mais uma vez, a pensar que, ali, as palavras estão a mais...
Às 19:00, em casa: o tinteiro HP21 lembra-me que me falta reservar lugar em 2 companhias aérias que permitam a S. viajar entre o Porto e Budapeste, fazendo escala em 2 aeroportos londrinos, em cerca de 12 horas.
Em menos de 30 minutos, as reservas estavam feitas, digitando apenas...

14.5.06

E talvez possamos um dia ser contemporâneos de nós próprios!

Sérgio Tréfaut, nascido em 1965, no Brasil, filho de pai português e de mãe francesa, realizou em Portugal um documentário que deveria ser objecto de estudo nas escolas portuguesas - LISBOETAS, 2004.
Este documentário mostra a vaga de imigrantes que chega a Lisboa e arredores em finais do séc. XX e no início do século XXI. Oriundos da Rússia, da Ucrânia, da Moldávia, da Roménia, do Brasil, de Angola, da Nigéria..., estes imigrantes rapidamente descobrem - felizmente o realizador dá-lhes voz! - a pequenez do país: construtores civis sem escrupúlos, serviços de imigração, onde a hipocrisia e a burocracia rivalizam; olhares xenófobos e concupiscentes; um sistema educativo completamente desfasado da vida activa...
Só a entreajuda lhes permite suprir as múltiplas dificuldades resultantes da clandestinidade a que se vêem forçados, apesar do país necessitar deles como de pão para a boca...
Antigo país de escravistas, que gerou no século XX mais de um milhão de incultos e pobres emigrantes, Portugal trata, agora, estes imigrantes (claramente mais instruídos) como os novos escravos de que perdera o rasto, primeiro no Brasil e, posteriormente em África.
O documentário LISBOETAS mostra-nos uma Lisboa desconhecida que acabará por emergir a nossos olhos da pior maneira, caso não se aposte numa política de integração. A não ser que eles, simplesmente, partam cansados da nossa arrogância, do nosso chauvinismo... os que ficarem acabarão por soçobrar em fundamentalismos espúrios, em delinquências noctívagas, caindo nós e eles naquele abismo de peçonha a que Sá de Miranda se referia já no séc XVI:
«Entrou, dias há, peçonha / clara pelos nossos portos,/sem que remédio se ponha:/ uns dormentes, outros mortos,/ alguém pelas ruas sonha./
Não sei se Sérgio Tréfaut conhece Sá de Miranda, sei, no entanto, que este caústico documentário me faz sonhar que, apesar de tudo, e com o contributo destes novos imigrantes, poderemos modificar esta enfadonha e miseranda realidade. E talvez possamos um dia ser contemporâneos de nós próprios!

13.5.06

Para além da querela entre o ensino da língua e o ensino da literatura...

«Toda a experiência humana é susceptível de ser transfigurada, vivida num outro plano trans-humano.» Mircea Eliade, O Sagrado e o Profano, A Essência das Religiões
Se Mircea Eliade se visse confrontado com um grupo de jovens com um difuso conhecimento da essência da religião e como uma visão exacerbada (ou inibida) da sexualidade, como é que abordaria o modo como, por exemplo, José Saramago descreve o misticismo das múltiplas monjas que passaram (e passam) a vida enclausuradas num qualquer convento?
Tendo como axioma que as monjas o são (ou o foram) por imposição exterior à sua vontade, Saramago não se furta, ao descrever a esperada relação com o sagrado (no caso, Jesus Cristo), de as apresentar como protagonistas de uma sexualidade grotesca disfarçada de misticismo:
« atormentam-na diabos, sacudindo-lhe a cama, e lhe abalando os membros, os superiores em modo de lhe agitarem os seios, os inferiores tanto que freme e transpira a fenda que no corpo há, janela do inferno, se não porta do céu, esta por estar gozando, aquela porque gozou...» Memorial do Convento.
E este tema não é fortuito na obra, se lembrarmos a natureza dissoluta de D. João V, a presença cupidinosa e sádica do infante D. Francisco, o falso angelismo de D. Maria Ana, o profusamente repetido sado-masoquismo das procissões, das touradas e dos autos-de-fé. Tudo parece reduzir-se a uma sexualidade que, proibida pela Igreja inquisitorial, alastra das alcovas reais aos conventos, invade as ruas para confluir num mar de decadência irreversível.
Num país de trevas, sem futuro, há, porém, uma esperança abençoada por um iluminado e sonhador - O Padre Bartolomeu Lourenço: Blimunda (de Jesus!) e Baltasar (Mateus?) - «este casal, ilegítimo por sua própria vontade, não sacramentado na igreja, cuida pouco de regras e respeitos, e se a ele apeteceu, a ela apetecerá, e se ela quis, quererá ele Memorial do Convento
Compreende-se que o autor queira ajustar contas com padrões culturais que são objectivamente responsáveis pela humana predação, mas, no contexto actual, que efeitos poderá ter no jovem leitor a abordagem de uma obra como Memorial do Convento? E se os jovens seguirem o caminho da esperança pregado por José Saramago?
À primeira vista, Baltasar e Blimunda (sem esquecer o Padre Voador) parecem protagonistas de uma experiência humana transfigurada. Mas sê-lo-ão, de facto?
Terá algum dia, o ME reflectido sobre os textos que moldam a educação em Portugal? A resposta está para além da querela entre o ensino da língua e o ensino da literatura.

11.5.06

Esta enfadonha realidade

«O racionalista genuíno não pensa que ele, ou outra pessoa qualquer, está de posse da verdade; nem pensa que a simples crítica como tal ajuda a chegar a novas ideias.» karl Popper, Sobre a Liberdade, 1958
Popper não conhecia esta nossa enfadonha realidade em que qualquer pessoa, independentemente da idade ou do saber, se pronuncia com o maior à-vontade sobre qualquer obra, sobre qualquer acção, sobre qualquer projecto.
Por exemplo, é comum dizer:«Saramago não sabe escrever.» «Quem lhe atribuiu o Nobel não sabe nada de Literatura». Ao mesmo tempo que não se percebe que qualquer texto narrativo, descritivo, opinativo... obedece a uma regra simples: introdução; desenvolvimento e conclusão. Pelo menos três parágrafos! E não consta que Saramago infrinja este princípio.
Se os parágrafos são longos, se as vírgulas têm o valor de travessões, se a maíuscula pode introduzir o discurso directo é porque as situações são apresentadas recorrendo a uma técnica cinematográfica, a única, até ao momento, capaz de relatar a simultaneidade das situações, acções, das intervenções verbais dos protagonistas e mesmo do vedetismo interventivo, isto é, dos empastelamentos que voluntaria ou involuntariamente caracterizam a acção verbal e gestual humana.
É essa representação da complexidade que atravessa o discurso -e, conseguentemente, a gramática - de Saramago. Por mais que se explique que a gramática é um conjunto de normas que regem uma língua e que numa língua se podem inscrever múltiplas sub-línguas que com ela interagem e, que, inevitavelmente, numa gramática da língua (portuguesa, por exemplo), se podem inscrever outras gramáticas, geradas por todos aqueles que alicerçam a instituição Literatura, parece que a linearidade mental nos impede de compreender a complexidade do mundo que habitamos.
E por isso o caminho que continuamos a percorrer é o da superficialidade, do reducionismo, do chiste e, de per si, da arrogância inquisitorial que nos permite aniquilar o talento em nome de uma qualquer verdade.

9.5.06

Entre a espada e a rosa...

Hoje quase que poderia dizer que foi um dia sem história, não fosse ter-me cruzado com a estátua de D. Afonso Henriques já depois de me ter deslocado ao Hospital Rainha Santa Isabel, em Torres Novas.
Esta falta de consideração pelo regimento régio, outrora severamente punida - pois quem se atreveria a colocar Isabel antes de Afonso, mesmo que santa? - deve ter sido responsável pela informação prestada pelo serviço de atendimento de que o Senhor Doutor C., «por motivos imprevistos», deixara de dar consulta de neurologia no referido hospital. E que, certamente, os CTT se teriam atrasado a dar-me a infausta notícia.
Perante a exclamação da funcionária, fiquei um pouco surpreendido: - «Já ontem não apareceu qualquer doente!» Surpreendido? Só um pouco! pois a data da consulta anterior também fora alterada. E durante a consulta, o doutor fizera-me um cerrado questionário sobre os efeitos psicossomáticos de uma punção lombar.
De facto, devo sofrer de algum distúrbio neurológico: Como é que é possível que eu não tenha ordenado os acontecimentos e tirado a conclusão adequada?
Os Serviços hospitalares no dia 17 de Abril terão redigido a nota que explicava que o Senhor Doutor C dispensava hereticamente as rosas da rainha santa; de imediato, os CTT prontificaram-se a entregar-me os espinhos; os outros doentes avisados já não compareceram na 2ª feira, dia 8 de Maio (mês dos maios e das maias!), e eu, ali, com aquela senhora numa cadeira de rodas!, atrevia-me a comparecer, à hora marcada, para uma consulta que todos sabiam, menos eu, que fora definitivamente adiada.
Por um segundo, vi erguer-se a espada de D. Afonso Henriques naquele horto de rosas...

8.5.06

Bem sei que a caruma se acama ou combusta facilmente...

(Se os predicados parecerem insólitos, asseguro que isso é fruto do pouco uso! Absolvidos os predicados, regressemos às coisas difíceis.)

Bem sei que a caruma se acama ou combusta facilmente e, por isso, não se lhe pode exigir que cultive a memória. Mas nem mesmo assim me conformo que não haja uma efectiva aposta no estudo da História dos séculos XIX e XX.

Perante o quadro de Francisco Goya que retrata os desmandos dos exércitos napoleónicos, os alunos do ensino secundário empastelam russos, pides, judeus, nazis, jesuítas, familiares-do-santo-ofício e até cenas de filmes belicistas a-não-ver.

Felizmente, são quase todos contra a guerra, embora desconfiem que sem ela o mundo não avançaria.

E por isso, numa primeira oportunidade, estão prontos a mudar de campo, pois como bem sabemos todo o burro come palha, a questão é saber dar-lha.

7.5.06

A máscara que chora...

Finalmente pude ver a exposição "Frida Kahlo 1907 - 1954" no Centro Cultural de Belém. E digo, finalmente, porque procurei a exposição ainda antes da sua inauguração, motivado pelo cartaz que reproduzia o quadro "Coluna Partida", de 1944. Ignoradas as circunstâncias da sua produção, este quadro parece emergir de um delírio de Dalí. Mas não, ele enraíza-se num autodomínio ímpar perante as contrariedades da vida, sobretudo, as constantes limitações de ordem física. Expõe a altivez da consciência perante a fragilidade do corpo, de tal modo que o auto-retrato se transforma num meio capaz de capturar aquela parte que de si parece afastar-se, deixando-nos ver a tortura da imobilização, o cansaço e a dor... a dor de si.
E quando deixa de olhar para essa dor de si, vê, em si e naqueles que lhe estão próximos, formas e cores que nos deixam antever um México nativo, onde a vida e a morte se encontram genuinamente ligadas. Onde o culto dos mortos é uma forma de vida, bem diferente da encenação espanhola da morte, inventada pela Contra Reforma.
Na arte de Frida, a máscara não esconde, não finge... a máscara que colocamos quando já não há nada a ocultar, a máscara chora.

6.5.06

1961, a preto e branco

A oportunidade de ver, na Cinemateca, o filme Une Femme est une Femme, de Jean-Luc Godard, realizado em 1961 e, apenas, estreado em Portugal a 18 de Novembro de 1975, no desaparecido cinema Estúdio, trouxe-me à memória um conjunto de dados que, aparentemente, nada têm a ver com o referido filme.
Em 1961, começava a frequentar a escola primária e esse início ficou, de imediato, marcado pelo falecimento do professor JL. Da sua presença, resta a ideia de que se tratava de um homem enorme, extremamente severo, que não abdicava do castigo físico para impor a lei da pátria. Um homem temido pelos alunos e reverenciado pelos pais. O professor tinha sempre razão! Tal como o grande timoneiro, o Dr. Oliveira Salazar.
Muito longe dali, na madrugada de 4 de Fevereiro de 1961, um grupo de patriotas angolanos atacara a prisão de S. Paulo, o aquartelamento da Companhia Móvel da PSP e a Casa de Reclusão Militar. Os revoltosos perderam 40 elementos e as forças da ordem, sete. Os sobreviventes refugiaram-se nas matas do Norte e Nordeste de Angola. Durante os funerais, colonos brancos em fúria massacraram centenas de negros. Entretanto, a 15 e 16 de Fevereiro de 1961, grupos de camponeses bakongos, enquadrados pela UPA, atacaram postos administrativos, vias de comunicação, povoações e sanzalas, mutilando e matando homens, mulheres e crianças europeus, assim como assimilados negros ou mulatos, considerados agentes dos portugueses. A resposta portuguesa foi rápida e brutal e não se limitou à região dos ataques rebeldes. Foram à pressa formadas e armadas milícias brancas. O reino do terror instalou-se.
Em consequência destes acontecimentos, Salazar remodelou o Governo, chamando para as pastas do Ultramar e dos Estrangeiros, Adriano Moreira e Franco Nogueira, e dando início à guerra do Ultramar como resposta ...
Só muito mais tarde, compreendi que o ano de 1961 - o ano em que entrara na escola primária -fora um ano determinante quanto ao futuro de Portugal e das suas colónias - as províncias ultramarinas - merónimas da gloriosa pátria portuguesa.
E também muito mais tarde, Pepetela (em A Geração da Utopia) ajudou-me a compreender que as mulheres de Lisboa, em 1961, vestiam de negro, com um lenço negro na cabeça. Não se sabia se vinham dum enterro ou do campo. Se traziam luto por familiares mortos em Angola, com o levantamento do Norte...
Em 1961, quando o luto (o negro) se abate sobre Portugal, Jean Luc Godard realiza o seu primeiro filme a cores - Une Femme est une Femme. E hoje, ao vê-lo, percebi melhor os motivos do atraso em que nos encontramos. E talvez tenha, também, percebido a razão da desmemória que me afecta: o filme produzido em 1961, só foi visto em Portugal em 1975 - a diversidade chegara...
Mas será que ainda vamos a tempo de realizar o filme: Portugal é Portugal? Mesmo que seja um Portugal tão gracioso e ingénuo como a Ângela Recamier!
PS: Este filme não deve ser confundido com o do realizador Scolari!

5.5.06

Raras e difíceis coisas dignas de atenção

«Omnia praeclara tam difficilia quam rara sunt.» Espinosa, Ética (Todas as coisas dignas de atenção são tão difíceis quanto raras.)
Se todas as coisas nos merecessem a mesma atenção, o que é que aconteceria à nossa memória? Provavelmente, incapazes de tratar toda a informação, entraríamos em colapso. Deixaríamos de ordenar os dados, de os procurar interpretar, de os valorizar. E finalmente, entraríamos numa deriva nihilista interminável.
E se... se... a hipótese acabada de colocar já for realidade, então teremos perdido a capacidade de nos ocupar das coisas dignas de atenção - as raras e difíceis coisas!
Teremos perdido a capacidade de motivar os outros para essas raras e difíceis coisas dignas de atenção!
E por isso na próxima terça-feira, os meus alunos poderão finalmente perceber que, - tal como muitos já suspeitam - afinal, não há coisas dignas de atenção... pois um outro professor me substituirá com igual (superior!?) proveito, desde que lhe tenha deixado a aula planificada...
Espero, no entanto, que nenhum aluno leia esta observação. Caso isso aconteça, esclareço que a terça-feira, não é a próxima, mas, sim, uma qualquer terça-feira de 2007.
Apesar de tudo, sobra uma dúvida razoável: Se as coisas dignas de atenção são raras e difíceis, ainda haverá alguém para quem a dificuldade seja um estímulo?

4.5.06

Explicação

A língua portuguesa, por vezes, é traiçoeira e pode gerar equívocos. Por isso, há dias procurei explicar a disponibilidade da caruma.... E para quem, ainda, não entenda a razão de ser deste blog, quero dizer-lhe que ele tem para mim uma enorme importância, porque obriga-me a registar, ainda que, por vezes, ficcionalmente, ocorrências (ideias!?) que, doutro modo, esqueceria de todo. Sempre tive dificuldade em memorizar rostos, situações, conversas, histórias (estórias). E porque ao longo dos anos tive que lidar com mil e uma pessoas, em contextos diversos, sinto cada vez mais pena de não ter um registo sistemático... E sei que frequentemente caio em situações ridículas, pois, quando abordado por, vizinhos, colegas, alunos, familiares, por vezes, não os consigo identificar...
Como quando nasci não vinha preparado para este bulício, tive que queimar muitas etapas, digo agulhas, e a minha esforçada memória, que nunca aprendeu correctamente os mecanismos da articulação frásica, passou a utilizar obscuros critérios arquivísticos... Nesta nova etapa, a escrita de um blog permite-me atrasar esse processo irremediável de desmemória... Eu bem sei que há neurologistas e afins, mas enquanto os puder adiar e, ao mesmo tempo, atrasar o caminho para o mar do absoluto esquecimento, seguirei por essa vereda...

3.5.06

Há dias...

«Enfim nestes cansados pensamentos,
Passo esta vida vã que sempre dura.»
Camões
Há dias em que, obliquamente, o desassossego alastra: as máquinas continuam no subsolo a molestar os cérebros imaturos. Impunes! Inexoráveis!...As máquinas?
E as incertezas avolumam-se, não no horizonte pessoano, mas, aqui, na soleira da porta, na valeta do caminho...
As agulhas acastelam-se em penumbra antecipada...
Todavia, ali, na Rua Tomás Ribeiro - o célebre autor do obliterado D. Jaime ou a Dominação de Castela (1862) -, encontro três jovens, que ignoram quem foi Tomás Ribeiro, e indiferentes à invasão espanhola que as sitia, me perguntam se podemos considerar os nomes próprios como deícticos.
E eu, compensando uma manhã de desânimo, respondi-lhes que sim, que os nomes próprios são indicadores, nos situam, individualizam, expressam o tipo de relação que mantemos com o Outro, quando lhe sabemos o nome próprio...
E Tomás Ribeiro, Fontes Pereira de Melo, José Fontana, Ventura Terra, Luís de Camões... a que tipo de deícticos corresponderão?
Aquelas três jovens, porém, estavam pragmaticamente preocupadas em saber se ALMA era ou não um deíctico?
E as agullhas deslocam-se indecisamente...

1.5.06

A disponibilidade da caruma

Ao contrário do que parece, a caruma não se oferece nem se vende. Pode ser passenta, a uma escala que nada tem a ver com o tempo de cada ser humano; nem sempre é rasteira; pode ficar ficar suspensa, numa antecipação da queda germinal.
A disponibilidade opõe-se ao fastio, ao tédio, ao preconceito, à opinião; procura sentir hiponimicamente como faziam Almeida Garrett, Cesário Verde, Teixeira de Pascoaes, Alberto Caeiro, Sebastião da Gama, Jorge Barbosa...
A alteridade interessa-lhe porque pode ser uma fonte inesgotável de aprendizagem e, consequentemente de plenitude. Freud e Maquiavel eram reducionistas: defendiam que a plenitude se atingia através da posse, do domínio do outro. E baseavam-se na conquista ou no fracasso para explicar a historicidade do sujeito.
Esta caruma não está à espera nem lhe interessa ser utilizada, mesmo que isso aconteça a cada momento; não lhe interessa o poder de Freud ou de Maquiavel. O que procura é a incerta reintegração cósmica!
No entanto, essa reintegração, apesar da disponibilidade, parece bem longínqua como o reconhece o poeta da caboverdeana Claridade, Jorge Barbosa:
«Passei um momento no caminho que as flores enchiam de aromas,
que as árvores enchiam de sombra.
E o chão era fofo por causa das folhas caídas.
Mas o perfume não era para mim, nem a frescura da ramagem
Nem para os meus pés o tapete que as folhas deixavam.
Porque o meu caminho é um outro, mais duro e mais longo.»
E para trás ficou, entretanto, o mosteiro (a Arrábida) com o seu inconfundível altar no Outão, um altar de cimento. Curiosamente, «outão» pode significar «parte lateral de um edifício» ou «vento que vem do alto mar». Qualquer um dos significados convém, pois a Secil Outão produz anualmente mais de 2.000.000 toneladas de cimento cinzento que escoa por terra e por mar, já que também dispõe três cais acostáveis, dotados de meios autónomos de carga e descarga simultâneas.
E a esta hora, a própria caruma se interroga sobre o tipo de relação possível entre o altar da Arrábida e a ara da Secil Outão.
A interrogação é uma das expressões da disponibilidade. Abre. Enquanto que a resposta enclausura.

30.4.06

Outão

«A Reserva Natural do Estuário do Sado é constituída por uma sucessão de água de rio e de água de mar, bancos de areia e de vasa, praias, dunas e sapais. Esta constitui um ecossistema rico e produtivo ao qual se encontram associadas uma flora e fauna diversas. O rio Sado nasce na serra da Vigia, a sueste de Ourique, e percorre 180 km de margens mais ou menos planas, desembocando no oceano, entre o Outão e a ponta de Tróia.» Diciopédia 2006
É aqui, diante das torres de Tróia, que me encontro desde ontem. E eu que pensava que Tróia tinha sido implodida!
Para cá chegar, atravessei toda a Arrábida com a sensação de que há algo de errado por estes lados. Em pleno século XXI, este pobre país continua a não saber explorar as suas riquezas! Em nome de que preconceitos? Quem é que efectivamente é responsável por toda esta reserva? Tem nome? Pode ser responsabilizado?
Chegado ao parque de campismo do Outão - 2ª escolha - verifico que ele está ocupado por residentes que se dedicam à pesca, a passeios de barco (?) ou simplesmente a apanhar sol, e que, quando ausentes, abandonam à natureza as suas acomodações não cuidando minimamente do respectivo alvéolo. A habitual incúria!
Este, parque, que beneficia de uma localização única, não tem, no entanto, condições para servir os muitos campistas e caravanistas que nele poderiam encontrar um abrigo temporário na descoberta de toda esta região.
Um outro exemplo de que há falta de profissionalismo, encontra-se às portas de Sesimbra, no Porto de Abrigo. Sem falar nos inacreditáveis acessos (adivinha-se que ninguém se quer responsabilizar por desfazer aquele emaranhado público-privado de desvios!), ao parque de campismo Forte do Cavalo (classificado com 2 estrelas, em quatro possíveis), descobri quando, finalmente cheguei à recepção, que este se encontrava em obras. Imagine-se: este parque fecha anualmente entre 1 de Novembro e 6 de Abril! Não tiveram tempo para realizar as obras, nem encontraram meio de divulgar o atraso. E quem quer lá chegar tem que atravessar uma zona privada! Apesar de tudo não é comparável ao Bojador(!?)
Esqueçamos os contratempos, olhemos os pinheiros, que, também, os há por aqui e não falemos da caruma porque as agulhas ainda não tiveram tempo de amadurecer ou a cimenteira lhes adulterou os hábitos...

27.4.06

Para sempre?

Eu pensava que a cor das minhas agulhas era o castanho, mais claro ou mais escuro se no Verão ou no Inverno... nunca me interessara muito pela História e por isso ignorava que antes as minhas agulhas tinham sido verdes. Na realidade, incomodava-me um pouco aquela passagem do tom claro ao escuro porque intuia que a chuva acabaria por me miscigenar com claro proveito da terra...E, sobretudo, temia que um qualquer pirómano me pusesse ao rubro e, nesse caso, de mim só sobraria o fumo. Não sei o que será pior: a miscigenação ou a combustão? Agora que cheguei a esta conclusão, quero acreditar que o ideal seria manter-me sempre verde, ficar presa para sempre a uma qualquer conífera, não precisava sequer de ser um pinheiro! No entanto, a necessidade de concluir precipitou-me numa outra armadilha: Quem quer ficar verde para sempre? Ficar para sempre?

26.4.06

Mas o ancinho já não espera pelo Estio!

Tenha ele - o ancinho - a forma de pente ou de rede, pode-se dizer que ainda é familiar do gancho do Baltasar Sete-Sóis. E a caruma se nunca gostou de ganchos, muito menos gosta de ser penteada ou enleada porque essas meiguices anunciam quase sempre um auto-de-fé em que os hereges deste século, em vez de serem penitenciados ou queimados, vêem fechar a escola, o centro de saúde, a capela... e abrir uma autoestrada para, afinal, os desterrar para a capital. E quando, agrilhoados, lá chegam, não vêem mais a casa, a horta, o pombal...
Tal como a caruma, os novos hereges são um perigo: pensam que podem envelhecer à sombra hospitaleira do trabalho de uma vida. Mas não. Essa vida vale tanto como a palha da caruma e, por isso, acabarão, em nome de um misterioso desígnio, arrastados por um altivo ancinho, em forma de rede, de pente ou de gancho...
E nesse auto-de-fé da vida nem Blimunda Sete-Luas poderá desenlear a vontade do seu Baltasar Sete-Sóis! É como se... a caruma fosse autófaga, pelo menos sempre que o Estio se aproxima...
Mas o ancinho já não espera pelo Estio!
(Entretanto, começou a soprar uma aragem que deixou a caruma um pouco aborrecida por se ter lembrado do ancinho. Isto há palavras em que já não se pode confiar!)

24.4.06

A debilidade no Indie Lisboa

A curta-metragem ÉRAMOS POCOS, de Borja Cobeaga obriga-me a retomar o modo como encaramos a debilidade. Um pai-filho abandonados, respectivamente pela esposa -mãe dirigem-se a um lar para recuperar a sogra-avó que há muito tinham rejeitado. Mal se aproximam do salão repleto de velhos, são abordados por uma idosa que se faz passar pela desejada sogra-avó que se propõe alegremente acompanhá-los a casa.
Num cenário imundo e grotesco, a sogra-avó faz o milagre de de lhes fazer as compras, de lhes preparar uma refeição, de lhes arrumar progressivamente a casa sem que eles desconfiem da verdadeira identidade da velha. E mesmo quando o genro a descobre, prefere o silêncio dos cínicos a perder a criada que, afinal, viera substituir a esposa-mãe.
Esta história mostra-nos que na caruma da velhice, há muita senilidade que o não é e, sobretudo, que há muita debilidade no modo como enfrentamos a doença seja ela física ou mental.
Hoje, no Lar de São Bento, tive mais uma vez a oportunidade de me interrogar sobre o modo como tratamos os mais velhos - ali, sentados, à espera que lhes sirvam o lanche, em frente duma Escrava Isaura que nas suas memórias dura anos, sem saberem que se trata de uma reposição...
E no meio do lanche, três velhinhas que esperam pela hora de se dirigirem ao refeitório para poderem merendar... E uma delas que exclama: Eu tenho 94 anos, tenho 94 anos... E levanta-se a custo e caminha...
E aquele pai-filho, ali, à espera que a nova criada, risonhamente, lhes preparasse o jantar!

22.4.06

Por vezes, a caruma entra em combustão...


O filme SUGAR de Patrick Jolley e Reynold Reynolds deixou-me em combustão lenta... De regresso ao Surrealismo, este filme joga na criação de uma nova ordem sem qualquer contacto com o mundo exterior. Apostando na ignorância desse mundo - apresenta-o como um universo fantasmático - e, em alternativa quer nos fazer acreditar que a alucinação é a única realidade - a realidade do frigorífico...
Quem mandou a caruma ao INDIE LISBOA 2006?

20.4.06

A caruma sente-se perplexa

Hoje, a caruma sente-se perplexa. Está incomodada, pois não sabe em que regime vive. Até há pouco tempo vivia despreocupadamente: nunca pensara na natureza da relação que há longo tempo mantinha com o pinhal ou mesmo com as agulhas em geral e as dos pinheiros em particular... Subitamente, um vento vindo do Continente começou a falar-lhe de relações hierárquicas, de equivalência, de oposição e, sobretudo, de inclusão. As relações hierárquicas nada lhe diziam, pois tinham-se esfumado numa madrugada de Abril; as de equivalência eram-lhe completamente desconhecidas, pois jamais imaginara que alguém a pudesse substituir por «carumba», «carumeira», «carunha» - palavras que, apesar de tão rasteiras como ela, jaziam esquecidas no fundo de um obsoleto dicionário. Para si, as relações de oposição tinham perdido qualquer significado, pois deixara de perceber que diferença havia entre «bem» e «mal», «pobreza» e «riqueza», «direita» e «esquerda» - há muito que o relativismo a deixara sem coragem para tentar ordenar o que quer que fosse. Chegara mesmo a sentir-se bem na periferia, onde, apesar de marginalizada, raros eram os que a pisavam... estava ali, alienada e, quando, em certas horas, pensava na sua condição percebia o que era uma relação de exclusão. Mas, hoje, a caruma está, de facto, perplexa: o vento voltou a falar de inclusão. Ainda perguntou às outras equivalentes - as agulhas - o que era a inclusão, mas estas não lhe souberam responder pois estavam ocupadas em obedecer ao vento que derivava num turbilhão capaz de aterrorizar um qualquer incauto... Valerá mesmo a pena explicar o que são relações hierárquicas, de equivalência, de oposição e, em particular, de INCLUSÃO? Não quereria o vento falar de EXPLOSÃO? de IMPLOSÃO?

19.4.06

A caruma dormita

Há alturas em que a caruma dormita sobre a terra, alheia ao murmúrio dos pinheiros. Parece indiferente aos pés que a pisam, apostada apenas em fundir-se com a areia muma mistura contra-natura. Apesar disso, quando regressamos, a caruma sumiu-se não se sabe se nas dunas, se nas ondas, se nas raízes das naus de Pessoa. De facto, na estação seguinte, a realidade parece não ter sofrido qualquer alteração: há quem defenda que D. João VI é filho de D. João V, como se a caruma nunca ali tivesse estado. D. José I, Maria I sumiram-se não se sabe se nas dunas, se nas ondas enquanto Pessoa se enfadava no longo areal do seu próprio sonho. Será que ainda vale a pena ordenar os acontecimentos?

18.4.06

A caruma não serve de acendalha.

Frequentemente, a caruma não serve de acendalha. Há uma perfuradoura no subsolo que ruidosamente impede que lhes explique a relação entre a Reforma e a Contra Reforma. Eles já ouviram falar disso, já me ouviram falar disso, mas L pensativamente reconhece que nada lhe ficou na cabeça. L não consegue ler o Memorial do Convento que nada lhe diz, ao contrário daquele falecido rapaz-actor da TVI que lhe desperta a emoção, como a milhares de outros adolescentes que ignoram onde se desenrola uma qualquer guerra ou se estão a ser educados para aceitar placidamente qualquer guerra. Estarão agora a pensar se os seus brinquedos são de guerra ou de paz!? Mas não verão o automóvel do rapaz-actor da TVI como um brinquedo bélico! Que interesse lhes poderá despertar a Contra Reforma? Que relação poderão estabelecer entre os brinquedos, o automóvel, a Contra reforma e o início de qualquer guerra? Não seria melhor falar-lhes da paz ou deixá-los mesmo em paz?

17.4.06

Textos anteriores

Domingo, 16 de Abril de 2006 As respostas débeis 
Hoje, domingo de Páscoa, apesar de ter gasto o dia em múltiplas actividades - assistência à família, análise de portfolios, discussões gratuitas - continuo sem saber como abordar a doença, como distinguir a lucidez da patologia. E se a doença não for mais do que uma desculpa que inventamos para não assumirmos determinados encargos? E se, afinal, a doença não é mais do que a máscara da lucidez? E se a causa do sofrimento não está no outro, mas em nós? Todos os dias, imaginamos mil sintomas que nos ajudam a esconder as nossas dúvidas. Todos os dias, acusamos os outros de intenções que nós próprios ocultamos. A debilidade das respostas resulta de uma mentira entranhada, de mil mentiras legitimadas por rituais milenares em que gostamos de nos escorar. E por isso, creio, que a consciência pesa um pouco mais neste domingo de Páscoa, pois, afinal,a ressurreição não passa de «uma nuvem fechada». 
Quarta-feira, 12 de Abril de 2006 A debilidade 
Como lidar com a debilidade? Sobretudo com aquela que aparenta estar lúcida, mas que esquece que não pode - ou será que não quer? - caminhar. Como estabelecer a fronteira entre o poder e o querer? Esse território de indecisão cria em nós um sentimento de impotência, mas também de fingimento de quem aprendeu a acredtar que o jogo é mais do que um espaço de simulação - será mesmo um espaço de superação!? O jogo que oculta a realidade permitir-nos-á ir à antiga casa, ao cemitério, almoçar, como se estes gestos pudessem ter significado. Mas que significado? Um significado de ajuste de contas? de traição? ou apenas de um acto de piedade? A debilidade da resposta é assustadora... 
Em torno de Ávila 5 de Abril de 2006 
O percurso até Ávila não se revelou difícil, pelo menos até às imediações. Aí tudo se complicou um pouco - os espanhóis continuam a construir autovías e a cercar as cidades de múltiplas circulares. E quando isso acontece, não há plano de viagem que resista: a carretera 403 tornou-se longínqua, fazendo desaparecer o camping de Sonsoles. Apenas vislumbrei o Santuário de Nossa Senhora do dito cujo, de regresso à 403, direcção Toledo. Estrada de difícil traçado que acabou por nos levar a um curioso camping “Pântano del Burguillo”, situado sobre a carretera C-902 direccion Navaluega. Percurso total: 600 km. Curiosamente, não havia qualquer outro campista. Ficámos sós e fechados no camping, na companhia do león, um elegante e possante cão de guarda. O dono decidiu ir dormir a casa, deixando-nos o seu telefone de casa para qualquer eventualidade. No entanto, como verificámos, não era possível contactá-lo pois não tínhamos rede nem acesso à Internet. Entretanto, o león começou a ladrar. Vá lá saber-se porquê? 
6 de Abril de 2006 Visita à lagoa (embalsa), ao rio e aos rochedos que caracterizam o Pântano del Burguillo. Tudo muito rochoso e agreste. O extraordinário aqui são os salmões(?) que sobem o rio num esforço titânico, lutando contra a impetuosa corrente e os declives que dificultam a subida do rio. A natureza – flora e fauna – dominam neste território onde poucos humanos parecem viver. As águias senhoreiam os penedos, escondendo as crias. Ao fim do dia, chegou uma outra família de campistas que veio ocupar a roulote que já lá se encontrava. Quanto ao dono (?) do camping, que nasceu em Bodajoz e há muitos anos passou férias em Tróia, tendo de caminho visitado Lisboa e arredores, continua fascinado com a pequenez das celas do convento dos capuchos em Sintra. O pai dele é que gostava de futebol tendo o hábito de atravessar a fronteira, para assistir aos embates entre o Real Madrid e o Benfica, no Caia. A estadia neste camping foi singular até porque o estalajadeiro estava sempre ausente, nomeando-me mesmo chefe de campo. Talvez por isso, acabei por me livrar duma viagem de barco em que o motor começou a deitar fumo… 
7 de Abril de 2006 Percurso: Pântano del Burguillo– Barráco – Ávila – Piedrahita – El Barco de Ávila – Jerfe (Parque natural: Garganta de los Infiernos) – 146 km Entre El Barco de Ávila e Jerfe, a estrada é extremamente sinuosa. Velocidade recomendada: 30 km. Espectáculo deslumbrante de cerejeiras em flor. As encostas da serra nesta época estão completamente brancas. «Os cumes blancos». Ávila Não foi difícil estacionar a autocaravana. Estacionámos perto da porta del Rastro, quase que instintivamente, pois alguns minutos mais tarde já nos encontrávamos no interior da Igreja de Santa Teresa de Jesus. Posteriormente, visitámos o museu de Santa Teresa que corresponde a um espaço desnivelado, aparentemente subterrâneo, composto por várias salas revestidas a tijolo e cujas abóbadas são arqueadas. A vida e a obra de santa Teresa e mesmo de S. João da Cruz estão muito bem representadas, quer através do depósito dos originais quer da obra traduzida em diversas línguas, como o polaco, o chinês, o grego, o alemão… Havia também várias marcas das passagens dos papas Paulo VI e João Paulo II. Na Institucion – “Gran Duque de Alba” vimos a exposição VETTONIA cultura y naturaleza: Qiénes eran los vattones?; Los verracos. Significado y cronologia de los verracos; la sociedad vettona… Catedral de Ávila e Museu (mistura de estilos). Recheio riquíssimo. Sobretudo uma enorme custódia em prata do séc. XV… Praça de Santa Teresa Porta del Alcazár Convento de Santa Teresa de Ávila (sobre a casa em que ela tinha nascido) Comboio Turístico – 30 minutos 8 de Abril de 2006 Pernoitámos no camping Valle del Jerte. Foi enchendo ao longo do dia. Visita à reserva natural de Garganta de los Infiernos. Ruta de los pilones - Ida e volta: 2 h e 45 minutos. Percurso acidentado que, nesta época, é muito bonito, pois a natureza desperta, as cerejeiras florescem, vendo-se (e ouvindo-se) os rápidos dos rios que correm impetuosamente em consequência do degelo da Sierra de Tormentos. O percurso termina junto de pequenas cascatas muito procuradas neste fim de semana. Há mesmo uma «fuente» e, também, quem aproveite para fazer pic-nic. 9 de Abril de 2006 Continuamos no camping Valle del Jerte. De manhã, fomos a pé, por entre cerejeiras em flor e ouvindo diversas aves, caso raro, entras elas o cuco, até à localidade de Jerte. 45 minutos para cada lado. Um pueblo simpático com início junto ao rio do mesmo nome, e uma igreja antiga, de pedra, e muito bem decorada. Produtos locais: licor de ginja, sabão de azeite, chocolate de azeite, queijo, também, em azeite…hurdanitos (rebuçados) de mel e pólen de las Hurdes… um domingo tranquilo. Neste fim de semana, tivemos tempo para verificar que a Garganta de los Infiernos é muito procurada por famílias, namorados, grupos de escoteiros e mesmo por um grupo de cerca de 50 pessoas vindas de Huelva (?). Os espanhóis continuam barulhentos, mas revelam-se asseados e amantes da Natureza… não deixam lixo em lado nenhum. Imagine-se o que seria se a Garganta de los Infiernos fosse visitada por portugueses! Um pouco à margem tenho lido um Boris Vian surpreendente, alternando com uma releitura morosa e profissional (?) do Memorial do Convento de Saramago. Creio que a imaginativa de ambos se equivale, embora Saramago se torne mais cansativo. Há em ambos uma nítida vontade de perturbar o leitor, de lhe mostrar o avesso das coisas e dos seres. E a Isabel, atenta às flores, já por aqui encontrou os saramagos, que recentemente tínhamos visto, em abundância, em Aljezur. 10 de Abril de 2006 Ainda não deixámos o camping Valle del Jerte. Entre Jerte e Cabezuela. O percurso pedestre de 4 km revelou-se um fiasco. Afinal, os espanhóis também colocam o entulho («escombros») em lugares protegidos! O que não nos impediu de caminharmos (90 minutos: ida e volta) na direcção de Cabezuela, tendo aproveitado para comprar alguns produtos locais, designadamente separadores de alabastro(?), para estantes de livros. A pedra, no entanto, provém de Saragoça. Hoje, 2ªfeira (lunes), no camping tudo está mais calmo, apesar dos escoteiros continuarem os seus constantes jogos e cantorias. Nos acessos à Garganta de los Infiernos, mantém-se o movimento dos dias anteriores. 11 de Abril de 2006 Regresso a casa. Por muito que estude o mapa, ainda não consegui decidir que percurso vou fazer. Inicialmente, deslocar-me-ei para Plasencia, embora saiba que valeria a pena voltar para trás (direcção de Ávila) para ver mais uma vez as cerejeiras em flor. É uma paisagem deslumbrante, mas o caminho é tão tortuoso! É importante notar que, apesar dos vários choques tecnológicos, aqui, as comunicações são difíceis. Durante todos estes dias não consegui aceder à Internet, nem telefonar para a nossa filha que se encontra em Pécs, na Hungria. Apenas contactámos por sms. Acabámos por regressar a Portugal através da EXT108, num percurso total de 403 Km. Terça-feira, 4 de Abril de 2006 Portela - Ávila A expectativa é grande. As pedras de Ávila testemunham uma história feita de glória (santidade, valentia) e fanatismo (despotismo e sofrimento). Não sei bem como é que vou encarar esse passado inquisitorial. Vamos partir amanhã - cedo? -,mas sem a obrigação de cumprir um horário. Pernoitarei certamente antes de chegar a Ávila. Resta saber se à beira da estrada ou em algum parque de campismo. Na Castilla - Léon não há muitos parques, sobretudo nas cidades, ao contrário do litoral espanhol. Esqueci-me de dizer que esta descontracção resulta de viajar na minha autocaravana. Espero que isso não desperte qualquer sentimento de inveja. Como é que Boris Vian encararia Ávila? _________________________________________________________________________________ A MORTE 3/3/2006 Estranhamente Irrompe das ruas desertas a mudez das casas Enleia as roseiras a ervagem daninha Agoniza ao sol de Inverno secreta tubagem Estranhamente procuro o lugar a voz a rosa a calma Estranhamente ouço o eco da enxada, da gadanha, do arroio Estranhamente caio e fico lá num não-lugar Enleado em mim mesmo 2/3/2006 Passei por lá Passei por lá e não te vi! Reflectia só a modesta jarra Sombra ténue da tua presença. Passei por lá e só ouvi Sob a capa da terra O eterno incómodo dum involuntário queixume. Passei por lá e não senti a força da tua mão E saí a procurar flores esquecidas da tua presença. Passei por lá e só vi o olhar vazio do corvo faminto. 1/22/2006 Aproxima-se Cercam-me os fios dos teus cabelos nocturnos silenciosos Despontam em números proibitivos os teus ávidos dedos Parecem querer aproximar-nos no mar largo que fica para além do Sol 1/7/2006 Se tu soubesses Um lugar onde seduz um rosto sem luz Se tu soubesses O lugar donde partiste tinhas ficado um pouco mais Se tu soubesses As máscaras que nos cercam tinhas ficado um pouco mais Um lugar onde seduz um rosto sem luz Se tu soubesses que as máscaras ensaiam uma dança metálica de espectros Se tu soubesses O lugar que me deixaste tinhas ficado um pouco mais Um lugar onde seduz um rosto sem luz 12/15/2005 Um pouco mais cedo... Para ti, que lutaste sempre, Que nunca pensaste que o teu fim estava ali, naquele lugar branco, Asséptico. Que nem sequer esperaste pela meia-noite! Foste embora um pouco mais cedo... A morte é sorrateira, apressa-se invisível, Esconde-se dos sentidos, destrói numa euforia devastadora. Em certos casos, no entanto, a morte é mais leve do que a vida. Anoitece apenas. A vida, essa, pesa desmesuradamente. Absurdamente.