24.8.13

A Ericeira já foi mar das rascas

Ciberdúvidas: O verbo desenrascar vem «de des- + enrascar»; enrascar deriva «de en- + rasca + -ar»; e rasca é «deriv[ação] regr[essiva] de rascar». Finalmente, rascar vem «do lat[im] vulg[ar] rasicāre, de rasu-, part[icípio] pass[ado] de radĕre, "raspar"».
Apesar da elaborada explicação, parece-me que, em terra de navegadores e pescadores, será mais apropriado pensar que tal tipo de embarcação - a rasca - não seria assim tão segura, sobretudo quando se aventurava na rota do Brasil.
Um pouco de memória e perceberíamos que muitas rascas não terão chegado a bom porto! Os marinheiros embarcados (enrascados) que tinham a sorte de sobreviver não deixariam de deitar culpas à rasca pela morte dos companheiros!
Afinal, o problema era o mesmo de sempre: a segurança era frequentemente descurada, pois a ganância era lei.
Enrascados desde o berço, tudo serve como desenrascanço desde que a pimenta, o ouro ou o euro caiam nos bolsos...
E já nem vale a pena referir a origem do termo gajeiro (e seu derivado - gajo) que vigiava no cesto da gávea.

23.8.13

Um dia na Ericeira

Ruidosa ou veladamente, o homem mata. Tira a vida um pouco por toda a parte e fá-lo com recurso a todas as ferramentas –  das mãos aos robots, da pedra ao ferro, do fogo ao gás, da  água ao veneno, à droga, ao álcool, ao roubo, à insídia… As formas de matar multiplicam-se dia a dia! Na esfera privada e na esfera pública...
Por seu turno, silenciosamente, a Natureza gera vida coral, mineral, vegetal ou outra, mas fá-lo, indiferente à nossa presença ou ausência, regendo-se por uma norma que nos escapa ou que preferimos ignorar.
No meio, há sempre um gato na espectativa de derribar três ou quatro rolas e estas, argutas, vão saltitando de galho em galho à espera de o cansar.
Para além do pinhal, as águas oceânicas da Ericeira vão engolindo a areia em que, tempos atrás, desfizeram as arribas e, agora, invadem a terra que o homem tão orgulhosamente lhes conquistara…
(...)
Horas passadas, chega o vento atlântico que arrefece o dia e sacode a poeira da terra, deixando enrodilhados, pessoas e objetos.
E ao longe nem uma rasca! E nos intervalos, Crónicas no Fio do Horizonte, de Eduardo Prado Coelho, em tempos lidas na espuma dos jornais... O Eduardo que durante 30 anos se encontrou nas águas de S. Martinho do Porto, mas que, já no fim, citando Joaquim Manuel Magalhães, acusava o «país assassino» de ter destruído aquele, outrora, belíssimo lugar.
(...) Agora, o vento serenou. Apenas os cães dão conta de si, embalando-nos numa acesa disputa.  

22.8.13

A cabeça


Quando a cabeça já nos confunde, exigimos ao corpo um esforço mais: privamo-lo da gordura, do açúcar e do álcool, e obrigamo-lo a caminhar… E subimos e descemos, ao sol e à chuva, de dia e de noite, em passo lento ou acelerado, no bosque ou à beira-mar…
E subitamente uma voz interior convida-nos a penetrar no abismo, a desistir da caminhada, a não regressar ao ponto de partida porque, na verdade, esse ponto ficou irremediavelmente para trás.
As viagens são sem regresso! Por enquanto, vão ficando de fora as que se limitam a gerar espaço, mesmo que o tempo as dissolva…

21.8.13

Cadernos de notas e agendas

Quando procuramos elaborar um balanço, ou melhor, quando nos solicitam um balanço e a memória não ajuda, regressamos às agendas e aos cadernos de notas ou de tarefas.
Se ainda os tivermos à mão e não nos faltar a coragem de os decifrar, iremos pouco a pouco descobrir que o que foi pensado para nos ajudar a agendar o presente e o futuro é, afinal, um repositório de acontecimentos passados da mais desvairada natureza.
Aos nossos olhos, surgem os nossos doentes e os nossos mortos, as nossas viagens e as nossas despesas, detalhadas até à ausência de sentido. Despesas que, frequentemente, nos são impostas por sonhos e devaneios familiares, sem omitir as crescentes obrigações fiscais e os cortes reiterados nos rendimentos...
Numa outra perspetiva, estes registos indicam-nos onde estivemos ou, pelo menos, deveríamos ter estado. E este dever não era nosso, era nos imposto pela profissão, pelos cargos que desempenhámos.
E de repente, surge a dúvida: Se num certo ano, estive envolvido em tantas tarefas, qual terá sido a qualidade do trabalho desenvolvido?
Nesta perspetiva, o caderno de notas é claro e, ao mesmo tempo, enigmático. Quem ali se inscreve viveu um ano múltiplo, isto é, um ano em que a dispersão foi a regra, imposta pela solicitação alheia. E o mais grave é que, no caderno de notas, nada existe que diga qual das tarefas era a mais importante: se cuidar da mãe, se cuidar da esposa, se cuidar da filha ou do filho, se cuidar dos alunos, se cuidar dos colegas, se estar presente a toda a hora, se ser um funcionário zeloso...
Desta leitura resulta, no entanto, uma lição: a minha próxima agenda vai ser constituída por folhas soltas e, de preferência, em branco...
 
Muitos não conseguem impedir-se de ter a impressão que é o tempo que passa, quando, na realidade, o sentimento de passagem refere-se ao curso da sua própria vida. (registado no caderno de notas 2012)
   

20.8.13

A verdade do papiro e da pedra

Creio que  se pode viver sem ler! Na verdade, durante muito tempo, o mundo singrou sem manuscritos. Não havia necessidade de registar ou de procurar a verdade em qualquer pedra ou códice, porque, simplesmente, ela não existia.
A verdade foi uma invenção de faraós avarentos e megalómanos que aproveitaram o papiro que o Nilo lhes ofertava. Diga-se, para que não se desvirtue o curso da história, que o povo hebraico, não querendo ficar para trás, enviou o pobre Moisés ao cimo do Sinai registar a lei (verdade) de Jeová nas tábuas de pedra que a montanha lhe ofertava.
Em nome da verdade, se ceifaram muitas vidas, de tal modo que foi necessário registar e justificar a sua eliminação.
E como funcionamos em circuito fechado, alguns homens consagraram o seu tempo aos Livros de Horas, orando pelas vítimas dos faraós avarentos e sequiosos de glória e de eternidade...
E assim continuamos, aqui como na Síria, na Líbia, no Iraque, no México, na Colômbia, no Congo ou no Egito! Tudo em nome de uma verdade que nenhum Livro consegue legitimar..
Com uma pequeníssima diferença: voltámos a viver e a morrer sem precisar de ler!

E porque a leitura, que a muitos importa, já não se ocupa da maçadora e punitiva verdade, mas, sim, da fantasia - esse lugar situado entre a verdade e a mentira - CARUMA está pronta a libertar-se das hiperligações que desprezam a leitura... e a escrita. CARUMA passa a ser um lugar de passagem ou, se se preferir um lugar de errância... 
 

19.8.13

Na sombra de Fausto

A decisão de ler, quando não se é académico ou investigador literário, resulta de circunstâncias que não controlamos. Há quem pense que a idade é um fator decisivo - talvez haja um tempo certo para ler determinadas obras... Talvez, seja necessária uma certa maturidade! Mas como é que se chega à maturidade sem ter lido o que mais importante foi escrito para o entendimento da natureza humana?
Enquanto leitor, o mito do "Fausto" não me era estranho e, normalmente, surgia na mesma página, na mesma esquina, de outro famoso mito ocidental - "D. Juan".
Em termos de padrões de cultura, o Fausto do pacto com o diabo era me familiar desde o berço - uma figura pouco recomendável que ousava infringir a todo o momento a condição humana, desrespeitando a vontade divina.
Na literatura e na filosofia, habituei-me a encontrar certos paladinos do «super-homem», designadamente, na cultura alemã, o que se de início me seduzia, com o conhecimento dos "efeitos" da ideologia subjacente e da consequente prática política, acabou por me afastar de uma abordagem sistematizada da obra de Goethe, o que hoje lastimo...
Neste agosto, não resisti a fazer duas leituras da obra em causa, tal é a intensidade (e por vezes, a leveza) do pensamento dilemático de cada personagem e, sobretudo, porque a religiosidade imanente não consegue estabelecer fronteiras nítidas entre o Bem e o Mal, entre Deus e o Diabo.
Na visão romântica alemã, o verdadeiro mundo estava plasmado no Cristianismo - um lugar em que Deus desafiava Mefistófeles para que pusesse à  prova a criatura humana ( Fausto) e em que o Diabo não desgostava do exercício, pois, afinal, lhe permitia entrar em territórios de fantasia que lhe estavam vedados - o universo greco-romano - porque anteriores à refundação da chamada civilização ocidental.
Ler o Fausto é, para mim, uma viagem às zonas mais ocultas do cérebro humano, mas é também revisitar os mitos que fundam a minha personalidade.
   

18.8.13

O nosso Fausto

Não sei se será aceitável misturar o Fausto de Goethe, tragédia escrita ao longo de uma vida, e com antecedentes ilustres que remontam, pelo menos, aos séculos XV e XVI, com os títeres que nos desgovernam neste século XXI.
Na verdade, o doutor Fausto, cansado da ineficácia da ciência e da alquimia, por ação de uma inebriante poção licorosa preparada por uma bruxa, a mando  do criado-e-senhor Mefistófeles, passou «a ver em cada mulher uma Helena», no caso particular uma Margarida que, depois de seduzida e rejeitada, qual Eurídice, resiste a sair da masmorra em que se encontra à espera do juízo final.
No caso português, creio que o argumento será um pouco diferente: cansado do amor e da manta rota (que diacho!), o nosso Fausto terá negociado com Mefistófeles o regresso à escola, à procura da poção mágica que lhe permita ganhar as eleições - todas as eleições!
Será por isso que acabo de ouvir que, entre Agosto e Setembro, o nosso Fausto fará no mínimo três «rentrées». Começou no calçadão do Pontal, vai passar pela Universidade de Verão de Castelo de Vide (?) e quanto à 3ª «rentrée», não sei bem, mas sei que já em 2012, ele também se tinha deslocado à universidade sénior da Portela...

Este não será o momento para me queixar, mas também não entendo a preferência pela palavra «rentrée» num país que despreza oficialmente o ensino das línguas estrangeiras, e, sobretudo, a aprendizagem do francês. Pelo desempenho que já lhe ouvir, o nosso Fausto, mal sabe ler a língua de Molière e de Racine.
Finalmente, é preciso ser muito cábula e lento para no mesmo ano letivo fazer três «rentrées». Melhor seria que o nosso Fausto tivesse seguido o exemplo do doutor Fausto... Pelo menos, acabaríamos livres de Mefistófeles!