16.4.14

Falar é arriscado...

De um lado, a superioridade; do outro lado, a inferioridade. De um lado, o Eu; do outro lado, o Outro...
A língua é o espelho da relação estabelecida entre os dois lados. A língua é a imagem. A língua é o palco.
A língua é, também, o risco. Falar é arriscado, quando não se tem plena consciência da matriz cultural da palavra.
E assim sendo, o escritor corre o risco de brincar com as palavras sem se aperceber que, ao fazê-lo, está a brincar com o fogo. Há escritores para quem dar nome às coisas e às pessoas de um e do outro lado é suficiente para assegurar a imparcialidade. E fazem-no com tal profusão, com tal realismo, sem dar conta de que o tempo e a distância matam a referência...

Vem esta nota a propósito de uma pequena e inofensiva expressão que encontrei no romance de Teolinda Gersão, "A Árvore das Palavras": « ... a mulher dele é que cozinhava, frango com piri-piri, que também se chamava à cafreal.» Basta consultar uma lista de restaurantes e (ou) de pratos para encontrar o termo cafreal
E quem é que se interroga sobre o seu significado, a sua origem? Ora, o termo tem origem em kafr que, originariamente, designava os que não professavam o islamismo. No século XVI, os portugueses aportuguesaram-no como cafre, nomeando os indivíduos atrasados que habitavam o interior de África. No século XVIII, o mesmo vocábulo já se refere aos escravos... Em Angola, por seu turno, encontramos o adjetivo cafrealizado, indicando um branco abjeto, miscigenado... Isto é, tudo que deriva de kafr é expressão de desvalorização do Outro...
Podemos ter muitas razões para gostar do frango à cafreal, mas isso não impede que a designação seja uma forma de inferiorização, não do frango, mas, neste caso de quem inventou a receita... certamente, indiana...

E já que referi "A Árvore das Palavras", aproveito para confessar que me parece que o romance bem poderia ter terminado em: «Um país mal governado. Mal pensado. Mas podia-se fazê-lo explodir, para obrigar a pensar tudo de novo. O Velho estava sentado no seu trono - mas não era verdade que podíamos derrubá-lo?»

E na verdade, o Velho foi derrubado e substituído pelo Novo! Só que 50 anos mais tarde, parece que nada mudou. O risco voltou: de um lado, a raça branca; do outro lado, os novos cafres...

15.4.14

Um museu que parece um silo em Badajoz

MEIAC de Badajoz 

Este museu visto de fora parece um silo! Poderia guardar os cereais necessários à subsistência do corpo, mas expõe as obras que nutrem o espírito. Deste modo, a forma mais do que metáfora é alegórica até porque vivemos tempos de exuberância, efemeridade e desmedida…

Por fora, o espaço envolvente denuncia esgotamento de recursos, de tal modo que o visitante tem alguma dificuldade em identificar o Museo Extremeño e Iberoamericano de Arte Contemporáneo de Badajoz.

No interior, no piso zero, dois pintores: Timoteo Pérez Rubio (1896-1977); Godofredo Ortega Munoz (1905-1982). Pisos 1 a três – fechados ao público. Piso quatro - 12 vídeo projeções de 12 autores: Jose Félix González Placer; Manu Arregui, On My Own. 2003 – uma obra que reflete sobre por que motivo uma política da vida ameaça sempre com uma ação de morte; Estibaliz SÁDABA;  Karmelo Bermejo…

No piso subterrâneo, um conjunto de obras da coleção privada de arte contemporânea do MEIAC, iniciada em 1995, em que sobressaem obras dos portugueses Rui Chafes, Manuel Casimiro, Joana Vasconcelos, Rita Magalhães, Rui Toscano, Carlos Vidal, Pedro Calapez, Luís de Campos, Júlia Ventura, Fernanda Fragateiro, Marta de Menezes…

Um museu com entrada gratuita que valoriza a cultura portuguesa!

14.4.14

No dia em que os reis de Portugal e de Espanha trocaram princesas


O que Saramago não diz no XXIII capítulo de Memorial do Convento.
A Igreja de S. João Batista foi levantada no século XVIII (…) com a ajuda outorgada pelo rei de Portugal, D. João V, pelo casamento em Badajoz da filha Bárbara de Bragança com Fernando VI.
Saramago coloca a ação numa «casa onde se encontrarão os reis e os príncipes, a qual foi construída sobre a ponte de pedra que atravessa o rio. Tem essa casa três salas, uma de cada lado para os soberanos de cada país, outra central para as entregas, toma lá Bárbara, dá cá Mariana (…) do nosso lado são tudo tapeçarias e cortinados de damasco carmesim com sanefas de brocado de ouro, e igualmente a metade da sala do meio nos pertence, e no tocante a Castela os adornos são tiras de brocado branco e verde, tendo ao meio um grosso ramo de ouro donde aquelas saem, e ao centro da sala de encontro há uma grande mesa com sete cadeiras do lado de Portugal e seis do lado de Espanha, todas forradas de tissu de ouro as nossas, e de prata as deles»
Se os portugueses tivessem atravessado o rio teriam compreendido que o rei de Portugal não admitia ficar para trás. A igreja de S. João Batista, não muito longe da Catedral de Badajoz, é prova de como D. João V era magnânimo, piedoso e despesista.

13.4.14

Um cigano exemplar


Badajoz, Iglesia de la Concepción
Beato Ceferino Giménez Malla, «El Pelé» (1861-1936)
(Recentemente foi me perguntado por que motivo viajava na carroça com os ciganos… Porque os homens não devem ser classificados em função da origem, do grupo identitário, da religião, da ideologia… )
Gitano, el primer beatificado de su raza, conocido familiarmente como «el Pelé», seglar, de la Tercera Orden Franciscana. Tratante de caballerías, hombre cabal y honrado, era muy devoto de la Virgen y de la Eucaristía, generoso con los más necesitados y preocupado por la catequesis de los niños. Le llevaron al martirio en 1936 la defensa de un sacerdote y el empeño en seguir rezando el rosario.
(…)
Al inicio de la guerra civil española, en los últimos días de julio de 1936, fue detenido por salir en defensa de un sacerdote que arrastraban por las calles de Barbastro para llevarlo a la cárcel, y por llevar un rosario en el bolsillo. Le ofrecieron la libertad si dejaba de rezar el rosario. Prefirió permanecer en la prisión y afrontar el martirio. En la madrugada del 8 de agosto de 1936, lo fusilaron junto a las tapias del cementerio de Barbastro. Murió con el rosario en la mano, mientras gritaba su fe: «Viva Cristo Rey». Juan Pablo II lo beatificó el 4 de mayo de 1997, y estableció que su fiesta se celebre el 4 de mayo.

10.4.14

Portas que se vão fechando...

«Aquela dor de ser excluída. Havia portanto lugares proibidos, portas que só se abriam para alguns. Assim era, pois. Esse noivo distante que a mandava ir não lhe abria essas portas.» Teolinda Gersão, A Árvore das Palavras.
Avanço lentamente na leitura deste romance, publicado em 1997, mas a cada momento penso que esta narrativa bem poderia ser analisada nas aulas de História que visem compreender a realidade sociológica portuguesa nos anos 60 e 70...
Amélia descobre ainda antes de chegar a Moçambique que o casamento não lhe iria trazer a felicidade e a ascensão social... Amélia  compreende que havia portas que não poderia atravessar por mais ambiciosa que fosse. Era a sua condição, a condição da maioria da população portuguesa...

Entretanto o 25 de Abril derrubou essas portas inexpugnáveis e permitiu que milhões de portugueses entrassem e dançassem nos salões outrora proibidos.  Os Capitães de Abril devolveram a esperança de uma melhor distribuição da riqueza e por um tempo tudo parecia ajustar-se. Mas foi sol de pouca dura! As portas, com a mudança de milénio, começaram a fechar-se e, hoje, a maioria dos portugueses já só bate às portas dos salões e sonha com o euromilhões e com audis alemães...
Até os Capitães de Abril, apesar de ainda poderem entrar nos salões, já só o podem fazer em silêncio... 
Tal como aconteceu a Amélia na longa odisseia da Metrópole para Moçambique, também nós sabemos que a primeira classe deixou de estar ao nosso alcance...

9.4.14

O povo cigano... e a classe cigana

Entre os povos sem pátria, avultam os ciganos. Oriundos dos jinganis, veem-se, desde tempos imemoriais, obrigados a viver de expedientes e, sobretudo, de vendas em feiras e praças. 
Objeto permanente de xenofobia, o cigano, reduzido à condição de nómada, confronta-se atualmente com a diminuição drástica de territórios onde permanecer temporariamente. Por outro lado, mesmo que não possam fugir à sedentarização, ninguém os quer por perto.
O povo cigano é vítima de anátema e porque desterritorializado acaba indevidamente classificado como minoria.

Para além do povo cigano, há uma outra classe cigana que encaixa bem na definição do adjetivo correspondente: «trapaceiro, ladino, traficante de mercadoria subtraída aos direitos».
Nas últimas décadas (em pleno cavaquismo), nasceu e cresceu à sombra dos partidos políticos, uma classe trapaceira (mente e manipula a toda a hora) e que se habituou a desrespeitar os direitos de quem trabalha ou trabalhou longa e honestamente. Para além de defender um miserável salário mínimo, não descansa enquanto os restantes salários e pensões não forem de miséria. 

Ora em tempos de pobreza e de acentuada iliteracia é mais fácil discriminar o povo cigano e outros grupos de origem africana ou asiática do que erradicar a nova classe cigana.

8.4.14

Dia internacional dos ciganos numa pastelaria de referência

Journée internationale des Roms
Dia internacional dos ciganos
C’est le 8 avril 1971, que les Roms, qui représentent la première minorité de l’Union européenne, choisissaient, malgré une situation encore difficile, les symboles de leur communauté ainsi que leur drapeau et leur hymne...

Manhã cedo, três ciganas, tagarelas, sentam-se a uma mesa de uma pastelaria de referência. A mais idosa levanta-se, dirige-se ao balcão e pede um café num copinho de plástico. A resposta seca diz-lhe que ali não há copinhos de plástico
A velha cigana não desiste, volta para o lugar e pede um café em chávena escaldada e um pãozinho de leite tostado... Ao balcão, vários clientes censuram a ousadia quando a cigana devolve o café porque quer a chávena cheia...
Do lado de lá do balcão, já se condena o RSI (o rendimento social de inserção) e tudo aquilo que o leitor esteja habituado a pensar...
Uns minutos mais tarde, a TSF entrevista um distinto cigano que refere que nas escolas pouco é feito por esta comunidade e que mesmo que os ciganos concluam os estudos com sucesso ninguém os contrata...
Por seu turno, a Alta Comissária  para a Imigração e Diálogo Intercultural,  Rosário Farmhouse, aponta que a situação atual dos ciganos não é muito diferente da vivida em 2008 e, sobretudo, que o número de queixas de discriminação desta comunidade não tem aumentado. Se algum problema existir, a culpa é da crise!

Em síntese, há séculos que a minoria cigana é discriminada e continua a sê-lo até no facto de estar sob a alçada de um pomposo Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural. Afinal, a quem é que serve a existência de minorias, se o objetivo é a integração?