23.4.13

Ele mora num campo rubro de papoilas

1913-2013 - Cem anos!
O Estado Novo. Para mim, um quarto longe da luz, a disciplina cega; para ele, a masmorra junto ao mar, a disciplina libertadora; certo dia, saí do quarto escuro, e só encontrei sombras; ele fugiu da masmorra para a terra prometida - eu era apenas uma ovelha tresmalhada; ele era o pastor de um novo rebanho...
( e aqui começa a divergência: eu deixara de estar disponível para integrar qualquer rebanho; ele, ortodoxo, disciplinava; eu, heterodoxo, indisciplinava.)
O cravo desabrochou em Abril, e ele regressou para impor a disciplina dos cravos. E eu, olhava à volta, e só via papoilas!
( E a divergência cresceu: o país das rosas de Isabel e das muralhas fortificadas era então o país dos cravos e das muralhas de aço e das rosas templárias. E eu, olhava à volta, e só via papoilas!)
Hoje, atravesso as mesmas galerias que ele calcou, entro na sala 44 e, de súbito, oiço-o, a ler atentamente Raúl Brandão e não a bíblia marxista-leninista-estalinista. Para mim, ele mora num campo rubro de papoilas!

22.4.13

50.000 alunos já viram Felizmente Há Luar!

Mais de 50.000 alunos assistiram à representação de Felizmente Há Luar! pelo grupo dramático A Barraca. A declaração é de Maria do Céu Guerra que, hoje, se revelou feliz com o comportamento dos alunos. Sala atulhada, telemóveis desligados, quase todos! Silêncio, quase sempre!
 
Resta saber se os mesmos 50.000 alunos leram o texto dramático de Luís Sttau Monteiro, se conhecem minimamente a ação do dramaturgo, e se seguem com alguma atenção o desempenho da "alma" da companhia. À entrada, alguém me perguntou qual era o "assunto". Lá fui dizendo que após as invasões francesas, por cá ficaram os ingleses com a missão de criar um exército português... Sempre os estrangeiros a libertarem-nos de outros estrangeiros e a tirar vantagem do negócio. O Marechal B. repetiu-o bastas vezes... e claro desviei para o general Gomes Freire, mas era tempo de subir a escada apertada até à sala 2...
 
Não sei quantas vezes já estive naquela sala, mas sempre que lá vou sinto-a acanhada e perigosa. O texto de Sttau Monteiro tem sido depurado, diria mitificado, de tal modo que, por vezes, fico com a sensação de que algumas personagens ganharam um ar burlesco, apesar da seriedade, mas também  do tom patético, infantil e quase alienado de Matilde, como se o mundo que a cerca só existisse para lhe salvar o marido.
Quanto à regência, desta vez, evitou as alusões ao Estado Novo e à Troika.
Enfim, só não percebi  (ou evito saber) por que motivo o luar (projetado) passou de amarelo a vermelho. Parece que a lua se transforma em sol, em promessa de derradeira libertação! 
Em termos didáticos, urge que os alunos não se fiquem por aqui, pelo espetáculo. Por vezes, a vida está no texto!
 

21.4.13

Um olhar demorado

A linguagem dos elementos, em Vergílio Ferreira, é, por vezes, aterradora. O VENTO bestializado, qual lobo da montanha, surge luminoso e furtivo, prestes a devorar o rebanho de Deus. Nem a montanha nem o rebanho de Deus são explicitados, mas os termos selecionados para  caracterizar a fome do vento apontam na sua direção.

«O vento árido de fevereiro trazia sempre ao Seminário doenças e mau agoiro. Era um vento esguio e furtivo, de pêlo no ar, rebrilhante e facetado muitas vezes de um sol frio de vidro. Recordo muito bem as suas unhas de arame, a sua presença nítida, escanhoada em azul, pura no esquadriado das arestas. Branco e arguto das geadas, tinha uma astúcia fina, penetrando, por qualquer fresta, nos compridos corredores e salões.»

Por outro lado, a recusa das «palavras cunhadas» fá-lo personificar as DUAS LAMPARINAS. Elas ocupam o espaço habitual das «devotas» ou, no melhor dos casos, dos piedosos pastores do rebanho de Deus. 
 
« Duas lamparinas, aos cantos da camarata, oravam recolhidas, de contas na mão, à anunciação da morte.»
 
Finalmente, o pavor do adolescente cresce no SILÊNCIO, também ele bestializado, talvez morcego, à medida que o VENTO, agora, equídeo, se solta contra as vidraças da camarata.

«Um silêncio ofegante, pesado de suor, inchava ao comprido do salão, subindo pelas colunas até às nervuras do teto. Amedrontado, eu escutava ansiosamente todos os rumores da noite, o arfar da doença à minha volta, os passos nos corredores, os relinchos vítreos do vento..

in Manhã Submersa, 1954

Na verdade, o equídeo mais não é do que o «corcel negro» que vinha buscar o Gaudêncio, a mando daquele Deus, que ele ousara desafiar ao questionar a sua existência, libertando António Lopes da incómoda questão, e deixando-o livre para se entregar à incessante busca do que em si se perdera ao entrar no  seminário - a MULHER.

Tempo primordial

Há certamente um tempo anterior às palavras!
Envoltos no esgrimir de ideias intangíveis, aceleramos e quando damos conta já não podemos voltar ao ponto de partida. As palavras já não representam o que pensamos, mas o que os outros delas compreenderam. E como não temos o dom da heteronímia, de repente percebemos que a comunicação se tornou equívoca ou, mesmo, absurda.
E é nesse momento que gostaríamos que o tempo se despojasse da palavra.
 
( Não se trata, aqui, de arrependimento, mas do reconhecimento de que quando os pontos de partida são difusos, o comboio raramente para na nossa estação... Corremos em linhas paralelas, intangíveis, para um ponto inexistente. Espero que perdoem a anfibologia!)

20.4.13

Ser voluntário

Ainda adolescente, alguém terá pensado que a minha educação passaria por servir a «Conferência de S. Vicente de Paulo». Não me lembro de me terem explicado como é que a «sociedade» funcionava. Lembro, no entanto, que, num determinado dia de cada mês, me deslocava a uma casa dos arredores de Santarém, onde deixava um saco de arroz, bacalhau, batatas e farinha, aos pés da cama de um moribundo. Não sei se alguma vez lhe conheci o nome, mas recordo para sempre que o homem padecia de um indescritível e doloroso cancro do esófago, o que o impedia de falar e de respirar. E continuava a fumar! À volta, os sinais eram de abandono e de medo. Não sei bem por que motivo este meu voluntariado involuntário cessou. À distância, a única explicação que encontro resulta da minha súbita mudança de rumo... (Hoje o cheiro do tabaco atordoa-me.)
 
Anos mais tarde, vi-me na situação de acompanhar (e de financiar) novas formas de voluntariado que continuavam a aproveitar o espírito solidário dos jovens. Fi-lo sempre com alguma reserva, pois tinha a sensação de que as ONGs se dividiam em «voluntários profissionais» e em «voluntários amadores». Frequentemente, os projetos dinamizados eram fruto da abnegação e da energia criativa dos tais jovens solidários. (E nesse contexto, passei a viver à força nos bastidores!)
 
Atualmente, a maioria dos jovens voluntários não encontra emprego ou pura e simplesmente perdeu-o. De pouco lhes serviu a abnegação, a criatividade, o sacrifício!
 
Quanto a mim, é cada vez mais claro que a caridade e o assistencialismo não passam formas encapotadas de exploração não só dos mais necessitados como dos voluntários genuínos. 

19.4.13

Palavras cunhadas

Há pessoas cuja presença, por si só, incomoda!
Há outras cujas palavras desconexas aborrecem!
Outras ainda irritam pelas palavras sabujas!
 
Há ainda as palavras dos catecúmenos, dos pioneiros, dos correligionários, dos fãs!
Palavras sujas, gastas, repetidas!
Há também  as palavras pífias!
 
Hoje, subitamente, a Assembleia da República desatou, em uníssono, a namorar! Parecia o Dia dos Namorados! Não sei se ofereceram flores, se se oscularam, mas desconfio que, ao regressarem a casa, só encontraram o silêncio dos traídos...
 
Ultimamente, as palavras têm  ganho a espessura e a forma da gelatina!
Será certamente essa uma das razões porque a memória me devolve a incómoda presença de Vergílio Ferreira:
 
«Nada mais há na vida do que o sentir original, aí onde mal se instalam as palavras, como cinturões de ferro, aonde não chega o comércio das ideias cunhadas que circulam, se guardam nas algibeiras
                  Vergílio Ferreira, Aparição
                                                             Ora, só há vida se o sentir for original!

18.4.13

Um dia com Luís Vaz…

Com tantos Camões a limpar a fachada, a disfarçar as rachas das paredes, a varrer o pólen dos plátanos, amanhã, a escola vai estar um brinquinho!
Mesmo que as cartas náuticas tenham sido recolhidas, nenhum aluno, émulo do Poeta, chegará atrasado e deixará de catrapiscar a colega do lado. E, sobretudo, nenhum perderá a oportunidade de ser feliz!
E nem a Troika nos fará desistir da cousa começada!
Há sempre uma solução nas trovas do Poeta.

A segunda, a D. Francisco de AlmeidaHeliogábalo zombava
Das pessoas convidadas,
E de sorte as enganava,
Que as iguarias que dava
Vinham nos pratos pintadas.
Não temais tal travessura,
Pois já não pode ser nova;
Que a ceia está mui segura
De vos não vir em pintura,
Mas há-de vir toda em trova.
A terceira, a Heitor da SilveiraCeia não a papareis;
Contudo, por que não minta,
Pera beber achareis,
Não Caparica, mas tinta,
E mil coisas que papeis.
E torceis o focinho
Com esta anfibologia?
Pois sabei que a Poesia
Vós dá aqui tinta por vinho
E papéis por iguaria.
Banquete dado na Índia a fidalgos seus amigos