14.2.15

O brilho difuso

O brilho difuso é o que sobra da nitidez. Ainda o arame farpado não tinha sido rasgado e já as cadeiras se dispersavam sob a calma estonteante do estio...
Os lugares de inverno sopram-nos para fora das ruas e deixam-nos presos à beira do arame farpado: há monólogos, tristes, sob lâmpadas fúnebres e, de tempo a tempo, um carro acelera... o movimento cresce, mas desaparece. 
Estamos à espera da nitidez das horas. Os olhos apagam-se e os ouvidos, inquietos, despertam. Por enquanto ainda há ruído. Mas até esse já começa a desesperar...
E depois há aquela vontade de desacertar os minutos, como se estes se deixassem enganar.
  

13.2.15

Passaram 50 anos!


Passaram 50 anos!
Em 1965, não creio que tenha sabido da ignomínia. Nem me lembro do momento em que terei tomado conhecimento. Vivia num espaço fechado onde a política não fazia parte da formação do adolescente. Só mais tarde, aprendi de cor a Constituição do Estado Novo e me alertaram para "os males" da Constituição de 1911 - os males republicanos, laicos, democráticos ou seriam outros?
A verdade é que hoje a Constituição democrática não é ensinada nas escolas nem os jovens são alertados para os males "corporativos, nacionalistas colonialistas..." da Constituição do Estado Novo.
De vez em quando, a grei de cada época lembra-se de colocar umas lápides e de baptizar uns tantos lugares com o nome das vítimas dos regimes, como se desse modo cumprisse o dever de formar gerações responsáveis e empreendedoras...

12.2.15

Nada dizer...

O tema de hoje é nada dizer ou, melhor, é evitar responder. A escrita corre por dentro, secando, a cada instante, a madeira do significante...
A madeira é de figueira, arde e não aquece... e o frio reaparece. E também o frio corre por dentro, secando a alma...
Nada dizer, nada escrever, esperar que o chicote das palavras emudeça...
Nada dizer... 

11.2.15

É apenas como o falar alto de quem lê...

Não tomando nada a sério, nem considerando que nos fosse dada, por certa, outra realidade que não as nossas sensações, nelas nos abrigamos, e a elas exploramos como a grandes países desconhecidos. E, se nos empregamos assiduamente, não só na contemplação estética mas também na expressão dos seus modos e resultados, é que a prosa ou o verso que escrevemos, destituídos de vontade de querer convencer o alheio entendimento ou mover a alheia vontade, é apenas como o falar alto de quem lê, feito para dar plena objectividade ao prazer subjectivo da leitura.
                Bernardo Soares

(Escola Secundária de Camões, 11.2.2015, às 17 horas, na Sala do Conselho)


O Clube LER PARA VIVER está de parabéns! 
Levou a cabo mais uma iniciativa de leitura pública, desta vez, tendo como fio condutor o verso de Fernando Pessoa / Alberto Caeiro, PELO TEJO VAI-SE PARA O MUNDO.
Sabemos, no entanto, que Caeiro prefere estar, a partir:
(...)
Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.

Como diria Bernardo Soares, a prosa e o verso só não se anulam porque é deles que se nutre o prazer subjetivo da leitura, o que me leva a pensar que, para os membros do Clube, a verdadeira fruição, mais do que no trabalho coletivo apresentado, está no tempo de preparação do evento: na descoberta do movimento, do gesto, da cor e do som das águas subterrâneas em que os poetas habitam...

Entretanto, "o vermelho anoiteceu", terá sentido Álvaro de Campos. E talvez porque a noite, frequentemente, chega mais cedo, começo a pensar que o Clube LER para VIVER poderá ainda ter mais sucesso se, em vez de partir do Tejo, partir da ESCRITA como suporte de VIDA... mesmo quando a memória falha... 
Mas essa é a Vida de Alice...

10.2.15

Parece que há cada vez mais corvos

Parece que há cada vez mais corvos e, sobretudo, corvos juvenis. Não estranho, pois se há cada vez mais lixo, se este país está classificado como lixo, se a educação foi lançada ao caixote de lixo, se já só é possível encontrar trabalho nas lixeiras dos outros... A única especialização que parece fazer sentido é a da gestão do lixo coletivo - e essa tarefa está reservada aos políticos, saídos de institutos politécnicos (e outros) e de universidades de vão de escada...

Se há cada vez mais corvos é porque as ciências da morte estão em expansão - outrora, ciências humanas e da saúde...

De facto, o número de corvos juvenis cresce a cada dia que passa; todavia não os podemos acusar de nada, pois eles limitam-se a limpar a porcaria que vamos deixando passar sob os olhos baços...

9.2.15

O mundo de Alice

Apesar do domínio dos jogos de linguagem e do precioso contributo dos novos auxiliares de memória, Alice mergulha progressivamente numa memória recôndita, feita de imagens de lugares e de pessoas distantes... 
Alice é culta e inteligente, pensa saber o que quer e até onde pode chegar, mas a gramática da doença não obedece ao controlo da consciência... 
As novas leis são bem distintas, pondo à prova o espírito geométrico que habita Alice. Indefesa, ela vai ficando cada vez mais dependente e, sobretudo, à deriva. Mas luta!
(...)
A personagem parece dar conta da realidade, mas creio que não o consegue. Não consegue dar conta da mudez intermitente, do olhar vazio, da sobreposição dos lugares, dos rostos trocados, da irritabilidade desesperada, da incomunicabilidade, da morte antecipada... Não dá conta de todos aqueles que não lutam ou não podem lutar, de todos aqueles que acabam totalmente sós...

8.2.15

Hoje, O meu nome é Alice


Hoje, O meu nome é Alice, comovente filme sobre uma doença que em nada me é indiferente. Julianne Moore representa com extraordinário realismo a progressiva perda de referências de uma doente de  alzheimer...
É um daqueles filmes que me incomoda profundamente, talvez porque me serve de espelho, ao revelar-me que as lacunas, os lapsos e as perturbações de linguagem mais não são do que sinais de envelhecimento precoce... e que envergonham porque aos olhos dos outros são manifestações ridículas...