8.6.10

O mapa e a laranja…

No comboio descendente
Vinha tudo à gargalhada.
Uns por verem rir os outros
E outros sem ser por nada
No comboio descendente
De Queluz à Cruz Quebrada...


No comboio descendente
Vinham todos à janela
Uns calados para os outros
E outros a dar-lhes trela
No comboio descendente
De Cruz Quebrada a Palmela...


No comboio descendente
Mas que grande reinação!
Uns dormindo, outros com sono,
E outros nem sim nem não
No comboio descendente
De Palmela a Portimão.
(Fernando Pessoa)

Quem desde os bancos da escola primária se habituou a olhar para o mapa de Portugal não pôde deixar de imaginar um país sempre a descer ou, em casos excepcionais, sempre a subir. Os rios descem para o mar, o dia para a noite! Ainda no século XIV, a Europa descia para a Mauritânia e precipitava-se bruscamente para o abismo. O mundo não passava de meia-laranja! Foi preciso o Infante lançar-nos ao mar para percebermos que a Terra não tinha fim, que, afinal, a terra não passava de uma laranja. Por isso, o Gama foi escolhido para contemplar o Globo e trazê-lo simbolicamente ao seu Rei e, este,  feito senhor desta nova laranja passou a ostentar a esfera armilar, como se  ela o sagrasse não como o “infante” mas como o “senhor”. Foram essa confusão e esse orgulho soberano que desfizeram o Império!

Cansado do Brasão, do Mar Português e do Encoberto, por instantes (1918), revelado no Presidente Sidónio Pais, Fernando Pessoa dedica-se a criar ritmadas sextilhas capazes de nos fazer esquecer qualquer desígnio divino ou nacional. Morto o rei, sobra a reinação. E o poema pândego serpenteia, sempre a descer de regresso à meia-laranja!

7.6.10

Da ataraxia

Feliz aquele que administra sabiamente/a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias / podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará/(…) /Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente /RUY BELO, A MÃO NO ARADO
Apetece-me gritar, deitar fora a charrua, atirar versos pela janela, deitar as cópias no lixo, dizer-lhes que o destino lhes secou as ruas, deixá-los simplesmente a sorrir da canga que os reúne e os suplicia. Deixá-los! Tudo o que lhes exige um esforço passou a ser”secante”. O cansaço é uma maçada para os madraços. Adúlteros da vida, praticam a mentira como redenção derradeira…
Falta-me a ataraxia dos Poetas, a beatitude dos santos, a serenidade dos jacarandás…

6.6.10

O que sobra das histórias invisíveis…

  

No Palácio que, no século XIX, foi edificado por Policarpo Anjos, como moradia de veraneio, a Câmara Municipal de Oeiras instalou, em 2006, o Centro de Arte – Colecção Manuel de Brito. Sem se saber como, há histórias de riqueza que continuam invisíveis, mas que, de algum modo, geram espaços de recreio e de cultura que vale a pena frequentar. Até Setembro, vale a pena visitar as exposição de Graça Morais e Por Paris.

4.6.10

Na morte de João Aguiar…

João Aguiar faleceu no dia 3 de Junho, aos 66 anos de idade. Antigo aluno do Liceu Camões, visitou a Escola Secundária de Camões no dia 13 de Abril de 2007, onde, no Auditório, perante uma plateia repleta de alunos, os encantou, lembrando a importância que os professores de Literatura Portuguesa, Maria da Conceição Caimoto e Mário Dionísio, tiveram na sua formação e retratando a vida austera vivida e sofrida no Liceu no final dos anos 50 e início dos anos 60.
Os alunos redescobriram, naquele dia 13 de Abril, o argumentista da Rua Sésamo (da 2ª à 4ª série) e de Inês de Portugal, tal como puderam interrogar o autor das colecções juvenis O Bando dos Quatro e Sebastião e os Mundos Secretos. E muitos deles revelaram conhecer os romances A Voz dos Deuses, Os Comedores de Pérolas e Inês de Portugal. Nesse ano, muitos foram os alunos que, no âmbito do contrato de leitura, leram João Casimiro Namorado de Aguiar.
Relembro, ainda, que nesse dia me prometeu escrever um testemunho para se associar ao centenário do edifício da Escola. Creio mesmo que foi nesse dia que surgiu a ideia dos testemunhos!
No entanto, ao consultar a obra LICEU de CAMÕES 100 ANOS DE TESTEMUNHOS, não dou conta de qualquer referência à sua colaboração. Talvez o seu espólio guarde, para a posteridade, um documento que nos ajude a compreender melhor aquele tempo dividido. Quem sabe?
João Aguiar morre num tempo de profunda confusão local e global de valores, agravada pelo caótico desregulamento financeiro e económico – crise por si prevista no romance O JARDIM DAS DELÍCIAS (2005).Trata-se de um romance sobre a União Europeia transformada em "Federação Europeia" no séc. XXI, em que o federalismo vai destruindo todos os símbolos identitários em nome de uma volúpia económica, conduzida pelos «conglomerados político-financeiros» que de fusão em fusão condicionam consumidores e governos tornando-se indissociáveis do poder político e da própria criação cultural.
Obrigado, João Aguiar.

3.6.10

Antero de Quental e Raúl Brandão, o mesmo drama…

(…)Interrogo o infinito e às vezes choro… / Mas, estendendo as mãos no vácuo, adoro / E aspiro unicamente à liberdade. Sonetos, Antero de Quental

Outrora rocha, tronco, monstro primitivo, o HOMEM pode contemplar e, talvez, orgulhar-se da sua Evolução, desde que não esqueça a sua génese. No entanto, passado é passado, e quando interrogamos o PRESENTE (in)finito e nos confrontamos com as nossas opções, por vezes, dá vontade de chorar. Percebemos que, em nós, residem liames que, a cada passo, nos tolhem os caminhos da liberdade. Há vaidades que nos embrutecem e que nos tornam censores da liberdade alheia.

(… ) Hoje sou homem – e na sombra enorme / Vejo, a meus pés, a escada multiforme / que desce, em espirais, na imensidade… É deste ‘homem’, desta ´sombra’ e desta ‘escada’ que fala  o GEBO de Raúl Brandão quando se interroga sobre qual é o seu DEVER, quando procura a LUZ. Para o GEBO, o passado inútil e doloroso tolhe-lhe a VISÃO e o caminho da liberdade deixa de ser uma demanda individual para se conformar com os padrões decadentistas vigentes no primeiro quartel do século XX.

Quando há dias, afirmava que o PROGRAMA É O ALUNO – o PROGRAMA É A PESSOA – estava precisamente a querer dizer que só há aprendizagem, só há evolução, se CADA indivíduo compreender e interiorizar a dolorosa e  despojada liberdade defendida pelo hegeliano Antero. Quanto ao GEBO mais valia que se tivesse suicidado! Mas faltou-lhe a coragem!

2.6.10

Pensar oblíquo…

Esta manhã, acordei à hora do costume. Da habitual rotina, alterei momentaneamente os passos. Pensei se valia a pena preocupar-me com os acentos circunflexos ou se eles já teriam mudado de lugar ou de nome, um pouco à maneira daqueles complementos que, por uma força obtusa, se tornaram oblíquos. E penso nas respostas oblíquas que irei dar ao longo do dia.

A verdade é que não vejo qualquer motivo para festas e não me apetece desfilar sob arcos de triunfo em ruínas. Ponto final redundante: não vou expor qualquer outro argumento porque já começo a ver o fantasma do Vergílio Ferreira a obliquar na minha direcção. E eu detesto fantasmas e, sobretudo, correr à sua frente…

31.5.10

No Campo dos Mártires da Pátria

Em comum, a ameaça de canícula; a luz e a sombra. Algures, a metamorfose anódina do que sobra da gruta lisboeta do épico. Em contraste, uma cidade suja que soçobra ao lado de jardins esplendorosos. Que dizer das pessoas às 3 horas da tarde? Os operários arrastam-se para as fontes; os jovens escondem-se nos bancos de jardim, sob o pretexto de lerem um livro ou de passearem o cão; os idosos e os desempregados, sentados em torno de uma mesa, jogam à sueca. Invisíveis.

E eu que faço aqui? Interrogo-me se há algodão no Campo dos Mártires da Pátria. Está claro que bem podia relembrar o Gomes Freire de Andrade, a Matilde; o Sousa Martins; o Câmara Pestana; o Viana da Mota… Mas com este calor quem é que quer saber!

/MCG

30.5.10

O primado da biologia…

Dizemos em ciência que o humano (biológico) se está tornar pessoa (psicológico). Quintino Aires

«6% dos jovens têm problemas de conduta (comportamentos incontroláveis ou destrutivos para si ou para os que os rodeiam).» Daniel Sampaio

A hipótese de Quintino Aires é simpática, mas inverosímil. Basta que chova para que do solo surja uma vegetação exuberante que elimina as veredas e destrói as culturas. Sem a intervenção humana, a biologia segue o seu caminho, impondo a lei do mais forte.

Quanto à transformação do humano em pessoa, o factor afectivo (relacional) é essencial. Os estímulos de apoio ou de rejeição são essenciais desde o berço; os limites (os marcos) devidamente colocados são necessários à decisão fundamentada.

Melhor do que defender que O PROGRAMA É O ALUNO, devemos procurar que O PROGRAMA SEJA A PESSOA. Afinal, os problemas de conduta de jovens e adultos resultam dos sinais errados que lhe foram dados na infância e que a ESCOLA, entretanto, não consegue corrigir… porque fazemos opções erradas, também elas alicerçadas no primado da biologia.

29.5.10

Inesperadamente…

  

Saíra cedo de casa a pensar se a post(agem) merece um comentário fora do universo dos blogues (‘páginas da internet com características de diário’). Um modo de iniciar o sábado um pouco frustrante, no entanto, refém  da A1, via-me condenado a rememorar o tempo em que tentava explicar aos meus alunos dos cursos de ciências da educação que o PROGRAMA de um professor do ensino básico e secundário era bem diferente do PROGRAMA no âmbito dos estudos universitários  (isto antes de Bolonha nos ter colonizado!). No ensino superior, o PROGRAMA ganhava autonomia, tinha vida própria (era um pouco como o capital, indiferente aos custos, sempre a pensar nos lucros!) – professor (quase sempre perito, disfarçado de investigador) e alunos pouco contavam, desde que servissem a Instituição (por contenção, abstenho-me de falar agora dos pilares, mas podemos, com proveito re(ler) sempre o Auto da Alma, de Vicente).

Não vá o parágrafo tornar-se ilegível, retomo a lição para, ainda na A1, rememorar o que dizia aos meus alunos: «No ensino básico e secundário, o PROGRAMA É O ALUNO.» Já na 6ª feira, ontem, regressara a esta certeza perante um aluno que de forma mais ou menos desabrida me perguntara ‘ o que era um púlpito?’. Quando tentei responder, dizendo-lhe que era ‘a tribuna utilizada pelos sacerdotes para…’, replicou que não queria saber pois a religião não lhe interessava! Fiquei perplexo com este jovem, já não era a semântica nem a religião que me preocupavam, era a ÔNTICA.

Entretanto, a viagem na A1 terminara, a questão do comentário deixara de estar em foco. O mato e a forragem tinham crescido exuberantemente; o atalho perdera-se; a oliveira centenária continuava frondosa. Inesperadamente, uma lura na raiz de um tronco! E, sobretudo, uma cobra que em vez de deitar fora a camisa me reteve a sombra!

Afinal, o que é que me impediu de meter o braço na lura e de pisar a cobra?

27.5.10

Nada é seguro…

    O tempo inexorável segue o seu caminho, embora no que respeita ao mundo florestal estejamos convencidos que o verde e as flores estarão de regresso no próximo ano. Porém, no caso em apreço, nada nos assegura que assim será. Quando o arquitecto, na ânsia de rebaixar o edifício, desce aos alicerces quem paga são as raízes. Claro está que não é ele que deseja ser o coveiro das frondosas árvores! A ordem vem de quem traçou um projecto salazarista de recuperação do parque escolar e serve clientelas de proximidade.

26.5.10

A crise financeira e o património…

  Neste tempo de crise, ainda ninguém perguntou quanto vale o património português! Não sabemos valorizar o legado que os avoengos nos deixaram. Anualmente, centenas de milhares de estrangeiros e nacionais percorrem o casco das nossas cidades, sobem aos castelos, entram nos museus gratuitamente ou por quantias irrisórias. A maior parte dos monumentos não consegue financiar a respectiva manutenção e as despesas com o pessoal. Sem recurso ao orçamento de estado ou ao mecenato, o património construído entraria em ruína. Mas esta não é a solução!

O Ministério da Cultura existe apenas para subsidiar clientelas. É um organismo inútil que agrava diariamente o estado da nação. As missões que lhe têm sido atribuídas podem perfeitamente ser asseguradas pelos municípios. A cultura só é universal se enraizada no local! Para quê um mediador centralizador quase sempre desconhecedor das especificidades culturais? Um mediador que pela sua própria natureza elitista deixa no esquecimento lugares e monumentos genuínos que bem podiam ser preservados pelas gentes que com eles co-habitam.

Em nome da Cultura, desperdiçamos milhões de euros e paradoxalmente somos cada vez mais incultos. (Ainda hoje alguém me perguntou se um soba era uma pessoa!) Afinal, para que é que precisamos de dois ministérios na área do ensino? E de que serve o ministério da economia?

PS: Basta sair do terreiro português para perceber quanto custa a entrada num museu, num castelo, numa catedral ou numa mesquita!

24.5.10

António Lobo Antunes - será que ele vem?

Diria que a passagem do tempo ocupa permanentemente a minha atenção: adiar o inadiável, enganar o finito, viver o momento, exorcizar o futuro, reviver o passado. A partir de uma determinada idade, a duração torna-se obsessão: a historicidade ganha substância.

No entanto, em termos comunicacionais, não posso imaginar que a juventude me acompanhe nas minhas reflexões que, para além da efemeridade do meu ser, se enraízam na História de uma Nação que desde a perda do Brasil arrasta as grilhetas da morte. Já lá vão quase 200 anos, sem falar noutras catástrofes que deixaram a Pátria moribunda.

O apego à vida, na obra de António Lobo Antunes, não é muito diferente da minha íntima vontade de atrasar o relógio biológico. E de algum modo, A.L.A. alimenta a ideia de que, ao suspender o seu tempo, está a impedir Portugal de soçobrar definitivamente. Morrer com a Pátria é o gesto derradeiro, por muitos sonhado, mas até agora nunca consumado…

Ora, os jovens sabem, mesmo que o não sonhem, que o pessimismo e o derrotismo são seus inimigos endógenos e exógenos. E por isso o passado não os encanta!

Quanto ao escritor, ele bem sabe que só suspenderá o tempo enquanto continuar a escrever… Por atalhos não conseguirá! E se insistir nessa via, despache-se, e, por momentos, regresse aos pátios que atravessou entre 1952 e 1959, porque os jovens nos últimos dias, com insistência, me perguntaram se ELE VINHA…

/MCG

23.5.10

Arte substantiva…

Golegã2 003 Golegã2 010 Golegã2 016 Golegã 027 Golegã 029 Golegã 033 Golegã 039 Golegã 040

Na GOLEGÃ, mesmo que alheados passemos, a arte fica: imperial, tentadora, iconoclasta, hípica, ambientalista.

22.5.10

(Des)encontro na Azinhaga

     Tal como Saramago com Deus, o meu encontro com a Fundação Saramago falhou. E, ao contrário de Saramago que ainda espera que o Senhor o visite, eu desloquei-me à Azinhaga, mas as portas estão fechadas, para férias, até  30 de Maio. Fiquei com pena, não por mim, mas por aquele jovem a quem perguntei onde se situava a Fundação e que me respondeu que ela estava fechada, que ele, o próprio, vinha de lá frustrado (o termo não é dele, mas corresponde).

De qualquer modo, fiquei com a ideia de que a Azinhaga no tempo das “pequenas memórias” era verde, católica, mas dividida. De um lado, os pobres, muito pobres, e do outro, os senhores, muito ricos. E talvez não tenha mudado muito! À excepção, do gigantismo atribuído ao escritor, como se este filho da terra tivesse definitivamente vingado a miséria extrema dos cativos.  Indiferente, corre o rio Almonda sonolentamente adjectivado por uma coruja.

/MCG

19.5.10

Declive?

 Estará lá o declive? Ou é da minha vista? Como quero ver direito, experimento inclinar a foto. Agora, parece-me melhor – um simples toque parece poder alterar a minha percepção. Quando envelhecemos, queremos acreditar que contribuímos para melhorar as coisas em que tocámos, mas, ao mesmo tempo, começamos a ter pejo em pensar que a nossa presença trouxe algum benefício ao nosso semelhante… A ligeireza da palavra intempestiva aborrece-me, coarcta-me os argumentos, como se apenas a pedra pudesse estancar a catadupa de rugidos que se abate sobre mim.

Independentemente do juízo que faça da realidade, que a veja em declive, esta sai sempre vencedora. Ainda caio na tentação de querer corrigir a inclinação da agulha atraída por uma força ignota, mas, de verdade, o que desejo é perder-me na raiz vida, ficando a ouvir o gorjeio, por ora, dos melros…

17.5.10

Plano inclinado…

A instituição “casamento” tal como foi concebida acaba de dar o último suspiro. O Presidente hipotecou as suas convicções, incompatibilizando-se com todos os que viam nele o garante de uma civilização judaico-cristã.

Resta saber o que significa esta decisão em termos de «avanço civilizacional». Esperemos que não estejamos perante uma vitória de Pirro!

16.5.10

A lagarta da couve

Não queria pensar no assunto, mas, quando olho a lagarta sobre a folha de couve, não posso deixar de pensar no tempo em que, qual patrão, eliminava a pobre-de-cristo sem me aperceber da minha crueldade. De facto não fazia ideia da metamorfose que o pobre e peludo ser esverdeado iria sofrer. Nem sequer me passava pela cabeça que tal termo “metamorfose” pudesse existir. Mais tarde, Kafka atravessou-mo no caminho um pouco como a lagarta da couve… E não deixo de pensar que o termo “metamorfose” se revelou durante muito tempo mais sedutor do que o bicharoco!

 

15.5.10

Hoje…

«Não, ainda não se proíbe ninguém de ler. Não, ainda não se queimam livros.» João Bénard da Costa a propósito do filme de François Truffaut, FAHRENHEIT 451 /1966

Em 2010, a destruição de livros está inscrita na lei. A imagem é quase tudo. A felicidade e o prazer são os que são proporcionados pelas drogas e pelo virtual – e cada vez mais pelas redes sociais virtuais!

Em 2010, os bombeiros que reprimem o prazer solitário da leitura já não são necessários. Creio, todavia, que um ou outro bombeiro incendiário talvez pudesse despertar em nós a sede de transgressão levando-nos a cobiçar os proibidos livros, sem ser necessário regressar ao tempo da oratura – o tempo anterior ao livro –, um tempo esfíngico, subordinado ao rigorismo ou ao laxismo da memória.

Quanto ao filme  FAHRENHEIT 451 /1966, os dois lados da moeda equivalem-se na anulação da consciência. Impera um pensamento geométrico que me arrasta para a leitura de Blaise Pascal… E dele para o jansenismo….

14.5.10

Crepúsculo…

 Quando a espiritualidade entra em crise, o recurso à transcendência perde todo o sentido. Em alternativa, a atenção humana ainda procura voltar-se para o Ideal, para a Revolução, para a Utopia, sempre com o intuito de criar um novo homem, mais justo, mais solidário, mais fraterno. No entanto, esse  novo homem acaba por se revelar déspota, ganancioso e predador. Eliminados o Destino, Deus, o Ideal, a Revolução, a Utopia, que lugar sobra para a consciência? Uma consciência  criada para servir a Ordem! Perante a Desordem, a consciência apaga-se de vez e o Ser que resta opta pelo Cifrão e pelo Momento.

(Em memória de Raul Brandão.)

13.5.10

Cilada…

   Longe de Fátima (talvez os locatários tenham engrossado a mole quis ver e saudar o Papa!), o guindaste, aparentemente, descansa  ao fundo da rua… No entanto, o contra peso de base está posicionado sobre um edifício, qual espada de Dâmocles, o invejoso. Porém Dionísio, o déspota de Siracusa, finge que cede o trono a Dâmocles que inebriado acaba por se aperceber que a sua glória pode cessar a cada momento, pois uma espada pontiaguda ameaça abrir-lhe o crânio…  Se nem Platão conseguiu evitar a escravatura, como é que a república, submersa pela dívida soberana, vai escapar ao seu destino?

12.5.10

O caminho do Papa

 Cercado de automóveis, Santo António aponta o caminho ao Papa, pois até um engraxador abandonara  as ferramentas de trabalho. De qualquer modo, o lugar escolhido, à porta de um banco, junto de duas caixas de multibanco, dá que pensar quanto às intenções do trabalhador.

Sentado num banco enquanto esperava (talvez, Godot?), cheguei a pensar que o santo estava a indicar-me o caminho, a mim. Por pouco não me sentei na cadeira, dando um novo rumo à minha vida, até porque, tal como aconteceu com o santo, estou cansado de combater o alheamento, senão a alienação… Falta-me a brandura papal!

11.5.10

A expectativa

  Tão distante e tão perto, a mão tímida acena, quase invisível. Para quem?
Houve tempo em que talvez pensasse nessa emoção. Hoje,  bastam-me apenas a cor e o movimento.
 
 

10.5.10

Em ruínas…

  Na esquina da Casal Ribeiro com a Almirante Barroso (Lisboa). Sempre que ali passo respeito o sinal e paro a olhar o que sobra do Império… da tal Fantasia Lusitana. E lembro que ali residiu quem, entre muitos outros, sonhou um mundo menos injusto – Amílcar Cabral que chegara a Lisboa em 1945 para prosseguir os estudos no Instituto Superior de Agronomia.

Em Outubro de 1944, a Casa dos Estudantes do Império-sede começara a funcionar, sob a presidência de Alberto Marques Mano de Mesquita, no n.º1 da Rua da Praia da Vitória, ao Arco do Cego. Mas, no mês seguinte, mudara-se para o n.º 23 da Avenida Duque de Ávila, onde vai permanecer até à sua extinção. Por essa altura, abre também uma delegação em Coimbra. Amílcar Cabral foi um dos dinamizadores desta importante instituição à revelia do salazarismo, e na euforia do pós-guerra.

A memória multicultural de S. Jorge de Arroios, aos poucos, fenece.

9.5.10

Fantasia lusitana, de João Canijo…

http://aeiou.expresso.pt/fantasia-lusitana-o-paraiso-de-salazar=f578926

Portugal é pintado como um paraíso de paz e harmonia, numa altura em que boa parte da Europa agonizava com a II Guerra Mundial e se tornava ponto de passagem ou de refúgio para milhares de pessoas, entre os quais escritores célebres como Alfred Döblin, Antoine de Saint-Exupéry ou a actriz Erika Mann, filha de Thomas Mann. Os depoimentos, em que relatam as suas impressões do contacto com o país, são lidos pelos actores Hanna Schygulla, Rudiger Vogler e Christian Patey.
(Se quis ver o documentário tive que me deslocar ao Campo Pequeno e entrar nos curros abundantemente decorados com imagens e artefactos cinematográficos de mau gosto, para além dos tectos baixos impregnados do cheiro a pipocas e do martelar de teclados e bombos ensurdecedores.)
No meio do conflito mundial, a excentricidade do Mundo Português surpreende os refugiados e arrasta o povo miserável, eternamente grato a um redentor (Oliveira Salazar) sob o abraço universal do Cristo Rei, para uma guerra colonial anunciada.
Insistir que Salazar nos livrou da guerra é uma aberração, pois todos sabemos que a “nossa guerra” se aproximava por nos termos conluiado, primeiro com os franquistas e depois com a Alemanha nazi. Em tempo de guerra, os exércitos precisam de rectaguarda e o Portugal de Oliveira Salazar estava à mão… A estratégia de Salazar esteve em saber aproveitar as necessidades alheias, adiando o sacrifício do seu povo…
Sim. Gostei de ver  “Fantasia Lusitana”. Mas não gostei do ar fascinado dos espectadores que sorriram do acasalamento das cebolas com as batatas e, sobretudo, que não sentiram vontade de cuspir para o chão!  

8.5.10

Finalmente, há teatro…

António Pedro, 1909-1966 by Biblioteca de Arte-Fundação Calouste Gulbenkian.

António Pedro (1909-1966) é o autor da Antígona, ontem, levada à cena, no Auditório “Camões”,  pela novíssima companhia Grupo de Teatro da Escola Secundária de Camões . Trata-se da Glosa Nova da Tragédia de Sófocles. Em 3 actos e 1 Prólogo incluído no 1º Acto. António Pedro, num artigo do Mundo Literário, escreveu um dia: Teatro é tragédia e farsa; o drama burguês, melífluo, a comédia burguesa, comedida, são apenas acidentes acontecidos na sua história milenária.»

A escolha do texto – acto fundador – revelou-se acertada. Apesar de tardíssimo, Creonte vergou-se perante a inexorabilidade do Destino. Tirésias, o adivinho, restaura mais uma vez a ordem em Tebas. Que sobriedade a da actriz (Rita G. Júlio)! E que dizer de Antígona pronta a morrer às mãos do tirano em defesa de uma antiquíssima tradição – dar sepultura aos mortos? OS VELHOS, numa elocução cristalina, tomaram partido como convinha… Pela 1ª vez, ouvi e vi um coro tão afinado que pensei encontrar-me numa ágora da antiga Hélade.

Esta nova companhia está de parabéns. Os sinais de uma escola integradora, participativa e de qualidade estão todos presentes neste espectáculo. E por isso quer felicitar todos os que denodadamente contribuíram para que, finalmente, haja teatro no Camões – alunos, funcionários e professores. Assim, sim!

7.5.10

Às 6h50...

Às 6h50,  a rede social está adormecida. De nada serve explicar que o tempo de aprendizagem da escrita se dá quase sempre em lugares inesperados. Não foi na Escola, no caso, no Liceu, que António Lobo Antunes aprendeu a escrever - foi na guerra (de Angola) - "DESTE VIVER AQUI NESTE PAPEL DESCRIPTO". Em aerogramas. 60 por mês.

6.5.10

Instantes…

 Por instantes o verde primaveril quase que esconde «o poder do oiro». Em nome de anónimos predadores (CORVOS), os executivos, tranquilos, repousam ou decidem novas aquisições. Das vítimas (MORCEGOS) nem ruído… arrastam-se, todavia, escada acima, ensimesmadas, dominadas pelo desespero dos condenados. Incapazes de superar a dor pessoal, esperam que a sorte lhes sorria, de modo a que busca atormentada do sentido da existência não lhes roce a consciência…
Afinal, enriquecer é para os predadores! Por enquanto as vítimas esperam o tempo do salto que lhes permita entrar no santuário do cifrão… Porquanto nem a Igreja da Santíssima Trindade nem o Abismo as movem.

4.5.10

O encanto dos nossos governantes…

« O Português, sendo embora um trabalhador incansável, possui um espírito empírico, não gostando nem de organização nem de disciplina. (…) Aliás, o encanto dos Portugueses reside nos seus próprios defeitos. Em 1966, mais de 70000 automóveis circulavam nas estradas de Angola, sem mencionarmos motos, veículos indispensáveis em África. Se nos arriscamos a partir a cabeça a todo o instante, na estrada que liga Catete a Luanda, devido à sua estreiteza e tráfego intenso, encontramos, pelo contrário, no sul de Angola, entre Moçâmedes e Porto Alexandre, mais de 100 quilómetros de estradas asfaltadas, dignas de uma pista de corridas. Um único  carro passará talvez, de hora a hora, nessa estrada, mas as autoridades quiseram, não sei por que razão, construir tal artéria em detrimento de outras, cem vezes mais importantes.» Mugur Wallu, Angola – Chave de África, pág. 136, 1968, Parceria A.M. Pereira, Lda, Lisboa.
Os nossos governantes insistem, como as autoridades coloniais, em construir vias e pontes fantasmáticas, em  esbanjar recursos em reconstruções plásticas de edifícios escolares, em detrimento da reordenação do território de modo a potenciar a capacidade trabalhadora e produtiva das populações.
Bipolares, saltamos da megalomania  para o imobilismo, sofismando permanentemente. O sofisma tornou-se numa arma capciosa, incapaz de iludir o mais incauto…
O encanto dos nossos governantes é tão antigo como o país que nunca soubemos administrar. É visceral. ESTRUTURAL. 

2.5.10

Nortada…

De nada serve querer desvalorizar o adversário, muito menos tratá-lo como inimigo. Quando o jogo é limpo, a verdade vem sempre ao de cima. Infelizmente, a face imunda do egoísmo e da cobiça continua a ter as primeiras páginas, sem que ninguém lhe ponha cobro… Inebriados de fanatismo, pouco produziremos neste mês de Maio. E isso pouco nos importa! Com PEC ou sem PEC, com mais ou menos Papa e mesmo que o Benfica perca o campeonato, o que interessa é que a nortada serene.

29.4.10

Vítor Silva Tavares evoca Luiz Pacheco


Na presença dos filhos Fernando, João Miguel e Luís, Vítor Silva Tavares cativou a plateia de jovens alunos da Esc. Sec. de Camões, ao saber ler e comentar, de forma emotiva e delicadada , a obra mais significativa de Luiz Pacheco – COMUNIDADE:
«Estendo o pé e toco com o calcanhar numa bochecha de  carne macia e morna; viro-me para o lado esquerdo, de costas para a luz do candeeiro; e bafeja-me um hálito calmo e suave; faço um gesto ao acaso no escuro e a mão, involuntária tenaz de dedos, pulso, sangue latejante, descai-me sobre um seio morno nu ou numa cabecita de bebé, com um tufo de penugem preta no cocuruto da careca, a moleirinha latejante; respiramos na  boca uns dos outros, trocamos pernas e braços, bafos suor uns com os outros, uns pelos outros, tão conchegados, tão embrulhados e enleados num mesmo calor como se as nossas veias e artérias transportassem o mesmo sangue girando, palpitassem, compassadamente, silenciosamente, duma igual vivificante seiva
Na Biblioteca, que Luiz Pacheco certamente frequentou entre 1936 e 1944, ficou a ideia de que o sarcástico e impiedoso polemista maldito era, afinal, um homem puro.

27.4.10

O Gebo e a Sombra (peça de teatro)

I - Raúl Brandão, um dos homens da Seara Nova, 1923, procurou transmitir nas suas obras o ressentimento provocado pela mudança brutal que ocorreu na sociedade portuguesa depois da guerra (1914-1918): «Nunca se viram tão grandes fortunas – nunca se enriqueceu, como agora, de um dia para o outro.» (Memórias, vol.III, p.68.) Fizeram-se, de facto, fortunas. A Baixa de Lisboa foi ocupada por bancos e casas de câmbio. A riqueza tornou-se ofensiva como nunca o fora antes, por estar agora nas mãos de quem a não tivera desde sempre. Políticos e negociantes  vindos não se sabia de onde compravam rolls-royces e prédios nas Avenidas Novas. Ao mesmo tempo que os novos-ricos enchiam os teatros, cafés e casas de jogo, as velhas classes médias, colunas da respeitabilidade, sofriam nas garras da inflação (Brandão, Memórias, vol. III, p. 87). (…) O pior, como notava Brandão, eram as consequências éticas da nova nobreza: « Em que fundamentos ou em que lei moral hei de assentar a minha vida se, no fundo, bem no fundo, invejo os que triunfam?» (Memórias, vol. III, p.82.)  Rui Ramos, A Traição dos Intelectuais, História de Portugal, vol. VI (direcção de José Mattoso), p. 551
Na peça de teatro GEBO E A SOMBRA, Gebo, cobrador (e contabilista) honrado, cumpridor do seu dever, mas pobre, esconde da mulher, Doroteia, que o filho João (a Sombra), o rouba, isto é, rouba o patrão da Companhia Auxiliar, expondo-o para sempre à chacota social. No entanto, assume o ato infame do filho, passando três anos na cadeia. Perante as gritantes injustiças que vai testemunhando ao longo da vida, GEBO, objeto de escárnio de quem serve, acaba por se interrogar sobre uma questão que se torna nuclear: «O dever de um homem é ser justo e honrado ou enriquecer?»
Cumprida a pena, Gebo regressa a casa com o problema resolvido. Na prisão aprendera que «a gente só não se arrepende do mal que faz neste mundo
No essencial, esta peça não, apenas, nos ajuda a compreender o falhanço da 1ª República, como também o que tem vindo acontecer desde que entrámos na União Europeia. Tal como há 100 anos, os atuais novos-ricos não querem saber nem de honra nem de justiça; só o ENRIQUECIMENTO lhes interessa. Só a RIQUEZA os move.

II - «Primeiro a nossa casa hipotecada e vendida naquele ano em que estive desempregado, 1893 - data negra. Depois a desgraça do filho...» Raul Brandão, O Gebo e a Sombra, Primeiro Ato.
 
A minha interpretação de 27.04.2010 ignorou uma data que, hoje, considero fulcral: 1893. (Esta data é negra porque corresponde à bancarrota parcial de 1892-93. Neste último ano, a dívida pública atingiu 124,3% do PIB. E só em 1902, foi possível renegociar e contrair novo empréstimo amortizável a 99 anos - 1902-2001.)
 
Deste modo, a situação de miséria vivida pela maioria da população acentuou-se enquanto uma minoria, onzeneira, enriquecia a cada dia que passava - enriquecia com a miséria dos outros. Esta circunstância é, assim, fundamental para compreender "o teatro de ideias" de Raul Brandão.
De um lado, vemos o Gebo, honrado e cumpridor do dever, mas pobre e desprezado; do outro lado, o filho, o João ladrão, mas revoltado, para quem é preferível «antes morrer do que viver sepultado». A viver na rua (ou na prisão) durante 8 anos (1893-1901), João vai descobrindo que « há criminosos que têm alma e homens honrados que a não têm.» E acaba por ser ele que enuncia uma ideia, mais do que nunca, adequada aos anos que vivemos: UNS SÃO UNS TRAPOS, OUTROS REVOLTAM-SE.
No essencial, a família representa os "trapos" e João, "o revoltado". Mais do que um delinquente, João desestabiliza as consciências, a começar pela do pai, que resolve, depois de roubado e desonrado pelo filho, aliar-se-lhe, respondendo à pergunta de Sofia: «Neste mundo atroz, neste mundo onde não há a esperar piedade nem justiça, só os desgraçados é que têm de cumprir o seu dever?»
Em conclusão, nesta peça, o autor aplica o seu conceito de teatro: este «deveria debater um grande problema social ou psicológico, e interessar o público com "peças sintéticas" que fossem "populares e humanas".»
 

25.4.10

Luiz Pacheco no dia 25 de Abril de 1974

O meu 25 DE ABRIL
Estou na cama de manhã e aproveito para apontar na Agenda o tempo que passa. Tinha ficado na véspera em casa a rever provas. O puto fora para o liceu. Resolvo ir à rua beber uma cerveja e continuar a revisão. Ao pé do chafariz, o barbeiro atira com esta: «então, o Marcello e o Thomaz lá foram ao ar...» Não percebo logo. Nem acredito como. Mas ele confirma: a Emissora Nacional não funciona, só o Rádio Clube Português é que dá música e de vez em quando comunicados breves. Já mais convencido, convido-o logo a festejar na tasca da Laurentina que era para onde eu ia. E depois, ainda duvidoso, vou com ele à barbearia a ver se oiço algum comunicado. Música ligeira, sem nada de marcial. Canções populares portuguesas, pouco mais. (Até a Amália, parece-me!). Mas passados minutos um comunicado do Comando das Forças Armadas. Aí, adquiro a certeza que é, deverá ser a repetição do golpe das Caldas, mas com outra amplitude. Refere que o público tem ocorrido às lojas, em tentativas de açambarcamento, e manda fechar o comércio. Aconselha a população a manter-se nas suas casas e as forças militares e militarizadas a recolherem aos quartéis e não oferecerem resistência à tropa. A coisa é grave. Parece que não há comboios e para lá de Sete Rios não se passa. Tenho algum dinheiro e resolvo logo ir ver (foi o melhor que fiz: ver para crer). Desço acelerado e vou a casa do Fernando Paços, perguntar se ele sabe alguma coisa. Se sabe não diz. Mas confirma. Acompanho-o à farmácia de Queluz Ocidental e depois (ele aconselha-me que não vá a Lisboa, pois não conseguirei passar – mas eu conheço outro sítio para entrar, ou sair, da minha terra e caminho acelerado. Muitos carros, em fuga discreta?) para cá. Em Queluz, já vejo lojas fechadas, outras a fechar à pressa e uma data de tontos a abastecerem-se para o ano todo... oiço que um tal comprou mais de cem pães. Rica açorda (ou negócio) deve ter feito com eles. Cafés fechados. Há comboios. Meto-me num para a Amadora, depois sigo a pé. No Bairro do Bosque (sempre o intenso movimento de carros a saírem), ainda consigo meter um copo. Não há jornais. Rostos, com as janelas fechadas, assomem entre cortinas. Tudo me dá a ideia de receio (mas em Queluz vi alguns magalas a planar, o que me deixou intrigado). Venho a pé até às portas de Benfica e o ambiente é o mesmo: fila de carros a safarem-se, comércio encerrado, mulheres com sacos de plástico cheios, tensão. Meto-me num autocarro da Carris, de Benfica para o Chile e fico-me um tanto a rir do Paços, que em Lisboa e a andar para o centro já eu vou. No Chile, só uma taberna aberta: bebo mais um copo, estou nas lonas. Animação. Um tipo ao meu lado compra oito maços de Português Suave, também está a açambarcar ou a fumar aquilo diariamente habilita-se a um cancro nos pulmões em beleza e rápido. Aparece gente com jornais (A Capital) e sei que estão a vender para os lados do Império. Vou logo lá, sento-me num degrau e sei as primeiras notícias. Tá bem! Resolvo ir a casa do Henrique, ver se ele estará. Na Carlos Mardel, uma senhora num 1º andar pergunta-me onde vendem jornais. Digo e ofereço-lhe o meu. O marido, que vinha à rua, fica com ele e eu fico reduzido a 30$00. Começo com sede e angústias. Estou em jejum e já andei um bom bocado. Penso ainda ir ao Manaças (António) mas desde a última vez, desde a nossa última conversa, ele não me está a apetecer. E depois, o importante deve estar a acontecer na Baixa. Enfio ao Montecarlo (fechadíssimo) mas consigo topar um tipo a bater à porta da Mourisca (também fechada) e entrar. É que há gente. Vou, bato, o Costa Loiro está a forrar vidros por dentro com papel, talvez com receio dalgum obus. Peço-lhe vintes e ele despacha-me. Meto à Rua Viriato e vou até ao quartel de Santa Marta (todas as tascas fechadas até ali). Dá-me vontade de rir ver os cabeças de nabo reunidos lá dentro, a falarem uns com os outros (é que obedeceram às ordens?). Mas logo ao lado há uma tasca restaurante, porta meio aberta, com gente e muito movimento (guardas a beber, outro a telefonar para casa e sossegar a mulher (?), diz que não há azar). Bebo uma Sagres e como uma sandes. E avanço para a linha de fogo, que não sei onde é. Metros andados, ouvem-se ao longe tiros e rajadas de metralhadora. Tipos que fogem. Mas onde será o tiroteio? Como a coisa parou, continuo a andar. Até que encontro, já não sei onde, o Almeida Santos e um tipo que é revisor no Diário de Lisboa ou Popular, já não sei. Metemo-nos num táxi que sobe pela Calçada do Carmo. Mas logo populares avisam (ah, entretanto, perto do Tivoli, já tinha comprado um Diário de Notícias, com mais informes) que a rua está bloqueada. O carro faz marcha-atrás e mete (por onde?) para o Bairro Alto. Bebemos não sei o quê numa tasca, o revisor vai à vida, o Almeida Santos pira-se e eu avanço para os lados do Carmo. Na Rua da Misericórdia, muita gente, tropa e um tanque de respeito. Da janela da Redacção da República, o Vítor Direito e o Afonso Praça (aquele grita-me: «estás muito bonito hoje!», eu levava o sujíssimo albornoz que me deu o Artur), noutra varanda o Álvaro Belo Marques, a quem pergunto: «como é que se entra para aí?», porque a porta da escada da República está fechada. «Vai pelas traseiras!». Vou mas também está fechada e logo à esquina aparece um vendedor com a última da República. É um verdadeiro assalto. Aí fico a saber dos chefes (Costa Gomes e Spínola) e o alvoroço é enorme. Já não sei bem: se vim ao Rossio, se de repente notei uma grande correria para o Terreiro do Paço. Sem perceber nada do que se passa, sigo a onda. No Terreiro do Paço, começa a chover. Há correrias e encontro uma rapariga que me conhece muito bem mas não topo logo. É a Maria João, a engenheira química, amiga do Henrique, com outro rapaz. Ficámos abrigados da chuva debaixo das arcadas, depois convenço-os a irem beber um copo ao Terreiro do Trigo (Campo das Cebolas?), não sei já se estava aberto se não. Ela tem o carro no Camões e para aí vamos. Mas o Chiado está cheio de gente, que quer assaltar a Pide. Já não sei se ouvi tiros. Vi ainda as (uma?) ambulâncias, depois quase à porta da Brasileira um rapaz ou homem com a mão cheia de sangue (seco?), que tinha agarrado num rapaz ou rapariga. Começam a chegar fuzileiros, há mais correrias, a Maria João e o rapaz perderam-se de mim. Cheira-me que já chega. Agarro um táxi e arranco para casa da Ção. Pela TV vi depois o resto. Foi bonito e foi rápido. Já posso morrer mais descansadinho.
[Luiz Pacheco, in Diário Remendado, Dom Quixote, 2005]
Nota: No dia 29 de Abril, pela 17 horas, a Escola Secundária de Camões recordará o SER e o DIZER do antigo aluno, Luiz José Machado Gomes Guerreiro  Pacheco(1925-2008).

19.4.10

Art Research de Jorge Castanho…

 No 58 B da Rua dos Navegantes (Lisboa) é, agora, possível ver, em suporte material, a Fábrica de Anatomias que o Jorge vem disponibilizando online desde Setembro de 2008. Numa visão clássica mitigada, o primitivo (o mitológico) acorda em mim o movimento dos fantasmas que, outrora, habitavam as minhas horas… É com surpresa que acolho a paciência e o rigor do artista que ousa entrar em espaços que eu preferi desertar…

Espero que o Jorge não leve estas palavras a sério, porque, como ele ontem me disse, quem escreve vê sempre as coisas de um modo diverso… O escolho, no meu caso, está de tal modo escondido que as coisas se me escapam antes que as possa reter. E, ao contrário, o Jorge fixa a “res”, mesmo que ela insista em transfigurar-se…

18.4.10

Robert Longo, Freud's Desk and Chair, Study Room

Confesso que a exposição ‘Robert Longo - Uma Retrospectiva’, no Museu Colecção Berardo, me impressionou ao ponto de procurar mais informação sobre o artista norte-americano, nascido em 1953. E encontrei o sombrio gabinete onde Freud secava as almas dos seus pacientes. A secretária é me familiar; a cadeira lembra-me uma sentença de morte : http://www.artnet.com/awc/robert-longo.html

Ao lado, o gigantismo e o colorido de Joana Vasconcelos surpreendem. Mas só isso! Um pouco, como se estivesse de regresso ao séc.XVII: o deslumbramento é efémero…

17.4.10

Eyjafjallajokull…

Diversões é título da crónica de Filipe Nunes Vicente (Revista Ler 2010). Para quem não tenha tempo para ler os Pensamentos de Pascal ou as meditações de Freud, designadamente O Mal-Estar na Cultura, vale a pena reflectir sobre os exemplos do Dinis e do Rúben, sobre o modo como ocupam o tempo… «as grandes diversões, paulatinamente, assumem o papel anteriormente exercido pelos narcóticos: tornam-nos indiferentes às limitações da vida.»
Será a natureza (tropical ou vulcânica) capaz de nos fazer sobressaltar? Agora é que o TGV vinha a calhar!

14.4.10

Santos do pé-da-porta

 ... não fazem milagres
Colega de José Cardoso Pires e de Luiz Pacheco no Liceu Camões, Jaime Salazar Sampaio morreu, aqui, ao lado, sem que o tenhamos convocado…
Jaime Salazar Sampaio (Lisboa, 5.5.1925-13.4.2010). Obra: Teatro Completo 1997; Aproximação (1945[1]); O Pescador à Linha (1961)[2]; Os Visigodos (1968); Junto ao Poço (1971); A inauguração da estátua (1974); Conceição ou O crime Perfeito(1979)[3]; Desconcerto (1980); Fernando (Talvez) Pessoa (1982); Magdalena Lê Uma Carta (1984); Olá, Fernando (1988). Poesia: Em Rodagem, 1949; Poemas Propostos (1954); Palavras para um Livro de Versos; O Silêncio de um Homem; O Viajante Imóvel (1979); O Poço (nota incompleta)

[1] - Editada pelo autor e por Luiz Pacheco
[2] - Quando vi Beckett, achei que era tudo o que me faltava para saber o que era o teatro (…) A sua influência na minha escrita é inegável. Ver Entrevista ao Expresso, 6 de Dezembro de 1997.
[3] - Um dramaturgo de mulheres?

12.4.10

A caça e a retórica da masculinidade…

«Essas pessoas não sabem o que é o marialvismo. Eu sou um antimiguelista profundo. O marialvismo vem de D. Miguel. (…) Há muita gente profundamente antimarialva que gosta de touros e que gosta de caça. De resto, eu acho que tudo nasceu da caça. Tudo. A começar pela poesia. Tudo nasceu da caça.» (Revista Ler, Abril 2010, pág. 36.)

«Já fora do terreno, apercebi-me de que o tema do marialvismo surge como recurso retórico central em três outros universos discursivos e/ou performativos: no fado, recentemente construído como “forma musical nacional” mas na realidade surgido nas classes populares de Lisboa e apropriado pela aristocracia; na tourada e no mundo tauromáquico; e em discursos de mitologia política sobre a “alma nacional”, em tomo do tema do Sebastianismo e da Saudade.Em todos estes campos, um traço comum: encontram-se par a par dois extremos da hierarquia social: na tourada, a aristocracia dos cavaleiros e a plebe dos forcados; no
fado, a aristocracia boémia atraída pelo exótico e o lumpen proletariado urbano; no saudosismo-sebastianismo, as figuras mitológicas de reis divinamente inspirados lado a lado com uma Nação composta de camponeses. A figura do Marialva, a do fadista, a do rei providencial, a do cavaleiro, são protótipos de masculinidade: compõem-se, mais do que por oposição ao feminino, por oposição a uma “falta” de masculinidade na burguesia, na intelectualidade, na modernidade; e discursam sobre contradições dinâmicas da masculinidade ideal: entre a valentia e o deboche, entre a nobreza e a pulsão dos instintos.»
(Miguel Vale de Almeida, Marialvismo)

O escritor (José Cardoso Pires) define-o mais lapidarmente: o marialva é um indivíduo interessado num tipo de economia e política assentes no irracionalismo. (Miguel Vale de Almeida, Marialvismo)

Por mais que o Escritor pense que é um antimarialva convicto, talvez valha a pena reler e repensar a obra de Manuel Alegre, pois o homem que já tem uma cátedra na Universidade de Pádua  não descura a hipótese de ter outra em Belém.

10.4.10

Sem muralhas…

A muralha do Castelo de Mourão P8100045

Durante séculos, empenhámo-nos em construir muralhas. Criámos um espaço público. A “praça” (a plazza; a ágora) era o centro da vida pública. Ricos e pobres, descíamos ao “centro” e partilhávamos o que queríamos tornar público. Lá, tomávamos conhecimento do que se passava no mundo.

Do outro lado da muralha, residia o privado, individual e institucional. Indivíduos e instituições apregoavam o direito à vida privada, à intimidade, ao sigilo, à confidencialidade, ao segredo de estado.

Hoje, a muralha abriu uma fenda de tal ordem que nem os indivíduos nem as as instituições resistirão à voracidade da rua.

A Igreja começa a ver na rua aquilo que tanto trabalho deu a preservar. O Estado é pasto da arraia-miúda. A Escola, ao querer sair à rua, acabará por sacrificar os pilares que a suportavam.

8.4.10

Borras…

Infelizmente, nem tudo é plano, circular e colorido. Vergado pelo odor das borras de azeite, tento dar mais um passo em frente, sabendo que a felicidade não passa de uma faúlha. Há odores capazes de destruir a luminosidade do fio translúcido do azeite.

6.4.10

O ensino das línguas estrangeiras

Dados publicados pelo diário i, no dia 5 de Abril de 2010:
3º Ciclo Secundário
Inglês 288294 120257
Francês 228095 15171
Espanhol 37607 14450
Alemão 1712 2528
Ao compararmos os dados do 3º ciclo com os do secundário, vemos que, para além do elevado número de alunos que não continuaram os estudos, a aposta numa segunda língua estrangeira é diminuta. O estudo do alemão é residual e a queda do francês é inexplicável. Entretanto, o espanhol prepara-se para se tornar na segunda língua estrangeira.
Deste modo, de pouco serve falar da internacionalização da economia ou na aposta na qualificação dos recursos humanos. De facto, a diversificação dos mercados e dos nichos de ciência e de cultura deveriam obrigar-nos a uma política do ensino das línguas estrangeiras totalmente diferente da actual.
Sem retirar importância à aprendizagem do inglês, convém relembrar que esta é a língua da globalização. Ora um país pequeno só poderá sobreviver à hegemonia da cultura anglo-saxónica se conseguir penetrar em universos linguísticos e culturais diferenciados. O futuro da própria emigração passa pelo domínio do maior número possível de línguas estrangeiras.
Curiosamente, a forte imigração que ainda se faz sentir em Portugal deveria motivar-nos a aprender as línguas desses “estrangeiros”. Todavia, tal como fizemos no período colonial em que rejeitámos as línguas dos “nativos”, continuamos a pensar que os imigrantes é que devem aprender a língua portuguesa.
Em Portugal, quem é que define a política do ensino das línguas estrangeiras?

4.4.10

No cante, o miúdo aprende a construir a muralha…

 O Aqueduto, o verdadeiro, vê passar a sua réplica e, impávido, procura outros horizontes, talvez, saídos do cante alentejano.  O cante movimenta-se como muralha dando voz à alma colectiva.  

3.4.10

O miúdo que pregava pregos numa tábua...

Em Serpa, li, em poucas horas, a última novela de Manuel Alegre. Por aqui ainda não encontrei o “miúdo” a não ser nas páginas dos jornais. E dificilmente o encontrarei, pois o autor reconhece «eu sou eu mesmo a história e as personagens». Ora Serpa é terra que, em vez de ter riscado a Ode Marítima, prefere rasurar o EU.
Do ponto de vista do género, este livro da vida parece-me uma daquelas novelas em que as personagens mais não são que a circunstância do herói. Ou será do anti-herói? O miúdo lembra-me o pícaro do Fernão Mendes Pinto! No entanto, não creio que o autor queira ir tão longe.
De certo modo, por entre considerações felizes sobre a descoberta e aprendizagem do ritmo da vida e da palavra poética (da escrita), há um «chegar-se à frente» que incomoda. Os protagonistas da obra, sobretudo, em prosa, lembram-me aqueles putos, algo machistas, marialvas e narcisistas, sempre à espreita para responderem perante o espelho: pronto, presente
Para quem já leu grande parte da obra de Manuel Alegre, «O Miúdo Que Pregava Pregos Numa Tábua” repete a maioria das obsessões do autor, e insiste num retrato confessional do EU, herdeiro do bom selvagem, capaz de resistir à maldade social, e de reconstruir a memória, quase sempre, em seu favor.
Afinal, todo o herói acaba, um dia, por falhar ou acertar o tiro quando menos lhe convém. 
PS: De qualquer modo, recomendo a leitura desta novela a todos aqueles que ainda não perceberam o que é a literatura

2.4.10

O Museu do Relógio em Serpa…

      Serpa é uma encruzilhada de memórias (de tempos). E para quem negligencie a passagem das horas, nada melhor que entrar no Museu do Relógio de António Tavares D’Almeida. Este museu, privado, é único na Península Ibérica e abriga 1800 peças. Algumas são únicas e capazes de nos recordar como os poderosos queriam marcar a megalomania do respectivo tempo.

1.4.10

Serpa… outra cal, outra luz…

  De Lisboa a Serpa são 199 km. Metade da distância é olival a perder de vista… aposta de espanhóis e de portugueses que recebem da União Europeia milhões e milhões de euros! Agora que se publicam os prémios recebidos pelos gestores das principais empresas e, também, intermináveis listas dos devedores ao fisco, bom seria se soubéssemos quem são os novos senhores do Alentejo e, sobretudo, qual é o seu contributo para o tesouro nacional.

À margem, ou talvez não, o parque de campismo encontra-se cheio de holandeses, alemães e ingleses que nos procuram não só pelo sol e pela tranquilidade da planície, mas, também, porque o preço da estadia é convidativo.  

31.3.10

O Santuário de Nossa Senhora de Lurdes

O Santuário de Nª Senhora de Lourdes implantado num cabeço na localidade de Outeiro Grande, paróquia de Assentis, Torres Novas, atraiu nas primeiras décadas do século XX elevado número de crentes e peregrinações. Foi um lugar de fé, até ao momento em que as discórdias sobre a sua verdadeira pertença começaram a surgir. Tudo começou em 1908, antes da implantação da República, em 1910, e das aparições de Nossa Senhora em Fátima…
Sempre olhei para aquele local com algum incómodo. Encerrado, sem gente, ventoso, de costas para a Serra de Aire. Certamente construído pelo fervor de uns tantos crentes de Deus e do Rei, o santuário seria um baluarte contra os ateus e os maçónicos… Hoje, voltei a subir o cabeço. Tudo fechado, o mesmo vento de outrora, algum musgo e aves furtivas… Do outro lado da estrada, uma lixeira a céu aberto no país dos sucateiros…
Entretanto, a rádio transmitia da Assembleia da República a missa republicana, onde Sócrates pontificava e exortava os hereges a apresentarem medidas para resolver os problemas do País…, como se ele os quisesse ouvir… Já nem a fé nos salva!
Quanto ao proprietário do santuário, o problema está QUASE resolvido… 100 anos depois! E quanto à lixeira, não se percebe se a ASAI (?) costuma atravessar o concelho de Torres Novas. E quanto à missa republicana, o melhor é desligar o rádio. Pensando melhor, o que me está a faltar é CARIDADE, porque a mensagem de LOURDES é clara: DEUS É AMOR E ELE AMA-NOS TAL QUAL SOMOS. Pelo menos foi o que a Virgem Maria repetiu por dezoito vezes a Bernadette Soubirous, na Gruta de Massabielle. No essencial, o mesmo faz Sócrates quando se dirige aos deputados: EU SOU AMOR E AMAI-ME TAL QUAL SOU.

28.3.10

Escola Secundária Liceu Camões

E se mudássemos o nome à Escola? Passado e presente rever-se-iam melhor na mesma instituição…
(As fotos foram eliminadas, não sei por quem...)

26.3.10

Num país de tenentes…

O delator é uma criatura querida. No Parlamento, sucedem-se as comissões de ética e de inquérito que, inquisitoriamente, procuram a verdade. E já percebemos que elas não funcionam sem delatores e relatores. Mesmo que não queiramos, podemos ser chamados a delatar.
Na comunicação social, já não há, como antigamente, fontes. Agora, há escutas largadas na redacção pelos delatores. E o redactor passa a relator ao transcrever as escutas.
Para que ninguém pense que uma conspiração eclesiástica fez ressurgir o Tribunal do Santo Oficio e os seus vorazes sequazes (os abnegados familiares!!!), o Ministério da Educação decidiu introduzir na escola pública um novo actor: o excelentíssimo relator - mistura de redactor e de controlador /tutor... Trata-se evidentemente de uma atenciosa cedência aos escribas, comissários políticos, directores espirituais, gurus e outros que tais. Anuncia-se, deste modo, uma nova casta que não deixará de ser pasto dos corvos.     

24.3.10

Tenentes…

(Quando os tenentes se insinuam junto dos chefes, os pelourinhos crescem…)

O delator aponta o responsável por uma infracção, com o intuito de comprometer o denunciado, tirando proveito junto do chefe.O relator dá, por escrito, um parecer sobre a acção e a ética de um profissional  para ulterior deliberação do chefe.O capataz é um indivíduo lambe-botas capaz de se fazer ouvir pelo chefe.

Leio o i, oiço a Antena 1, ligo o canal Parlamento, atravesso a rua, desço a escadaria, dormito no autocarro, desperto na areia… e os tenentes, frenéticos, elevam a voz até as minhas sinapses explodirem.

Só não compreendo porquê… eu nunca quis ser chefe de ninguém! Mas se o fosse, teria como regra de vida: a eliminação dos tenentes.


21.3.10

Risonho, o futuro da Esc.sec.Camões



E a propósito, para quem se interroga sobre o futuro da ciência e da poesia, transcrevo ARS POETICA de David Mourão-Ferreira:

Roubado à natureza o dossier secreto
Patente a analogia entre o fundo do poço
o rosto de Narciso    o sangue do incesto
há-de tudo prender-se  aereamente solto
Que o verbo seja um espelho   Ao mesmo tempo um véu
Que não baste   no lago   a pureza do rosto
A lira é com certeza a mão esquerda de Orfeu
Mas é a mão direita a que revolve o lodo.

20.3.10

Lugar de massacre…

 Sembène Ousmane (1923-2007).
Hoje vi, finalmente, o filme “Camp de Thiaroye(1988), na Biblioteca do Instituto Cultural Romeno.
Em 1944, um batalhão de atiradores de  diferentes religiões e culturas africanas , acantonado no campo de Thiaroye, no Senegal, espera a desmobilização e o pagamento dos serviços prestados à potência colonial – a França. Muitos deles lutaram em França contra a Alemanha nazi, tendo mesmo experimentado os campos de concentração.
No entanto, esse contributo para a libertação da Europa de nada lhes serve, pois acabam numa cova comum, chacinados pelo racismo da hierarquia militar, simpatizante do regime de Vichy.
Um filme que chega a ser divertido porque, apesar do que separa aqueles atiradores africanos, eles acabam por se entender em nome da justiça… É, todavia, um filme amargo e trágico, porque a Europa continua sem considerar África como sua parceira…
Nota: O título “Lugar de Massacre” , lembro-me, agora, é o título de um romance do esquecido Martins Garcia. Talvez valha a pena lembrar, a propósito deste filme, a dedicatória do autor açoriano: «a todas as vítimas da paranoïa e da incompetência dos déspotas, caídas para nada no campo do dever e do absurdo.»