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2.9.12

Caminhos…

Léon Bloy par lui-même

S. Paulo: « Nous voyons toutes choses dans un miroir.»

Tudo me surpreende desde o autorretrato de Léon Bloy (1846-1917) até ao título da obra panfletária “Belluaires et Porchers”, para cuja tradução proponho “Gladiadores e Porqueiros” o que talvez possa cativar algum leitor mais faminto…

Traduzir esta obra é uma aventura condenada ao fracasso tal é a violência da palavra escolhida, da imaginação verbal do autor, capaz de conciliar o inconciliável num universo em que dominava o antissemitismo, o dinheiro, o colonialismo.. o espírito burguês hipócrita e acomodado.

À medida que leio Belluaires… pressinto que por detrás se encontra um homem zangado, e por isso volto ao início dos capítulos à espera que cada palavra ilumine o motivo, esclareça a traição.

Atravesso as páginas, recuo e avanço, penso em desistir, até que percebo que para Léon Bloy o anúncio da morte de Deus era um´anátema e que, visceralmente católico, condena todos aqueles que se arvoram como pilares da igreja… uma igreja que ignora o Paul Verlaine, autor de SAGESSE (1881)… o único POETA CRISTÃO.

O olhar fixo num espelho feito de símbolos, L. Bloy, manipula a língua como se a palavra fosse o único caminho para a conversão, de comunhão… e por isso tantos se deixaram persuadir: Alfred Jarry, Louis Ferdinand Céline, George Bernanos, Marc- Edouard Nabe…

No que me diz respeito, continuo surpreendido pelo olhar daquele que, medíocre aluno, medíocre empregado, desejou um dia ser pintor, tendo alternado entre o misticismo e a revolta, mergulhado na pobreza extrema, por vezes classificado como anarquista de direita, mas que, no essencial, recusava o fenecer das almas.

E essa não deixa de ser uma questão central!

18.3.12

Chamados a capítulo


«Estas são as justiças visíveis.» José Saramago, Memorial do Convento, cap. XVI.
Com este curto período, o narrador resume o parágrafo anterior, aquele em que, intertextualmente, mergulhara no sermão do Padre António Vieira para expor que no século em curso ( da história e do discurso) o dinheiro é a causa maior da injustiça visível.
«Das invisíveis, o menos que se poderia dizer é que são cegas e desastradas, como ficou definitivamente demonstrado naufragando o barco em que vinham de caçar na outra banda do Tejo o infante D. Francisco e o infante D. Miguel, ambos manos de el-rei, deu-lhes uma rajada de vento sem avisar e virou-lhes a vela, caso foi ele que morreu afogado D. Miguel e se salvou D. Francisco, quando honrada justiça seria o contrário, conhecidas como são as maldades deste, desencaminhar a rainha, cobiçar o trono d’el-rei, dar tiros em marinheiros, ao passo que do outro não constam, ou são de somenos. Porém, não devemos julgar com leviandade, quem sabe se não pagou D. Miguel com a vida ter andado a cornear o mestre da barca ou a enganar-lhe a filha, a história das famílias reais está cheia destas ações.» José Saramago, Memorial do Convento, cap. XVI.
De anáfora em catáfora, a ordem dos termos inverte-se como se na família real todos merecessem o mesmo castigo, pois os crimes públicos e privados equivalem-se. Em termos de técnica narrativa, o modo como Saramago utiliza a vírgula serve para, de uma pincelada, resumir o que a História  branqueara, mas que a Literatura registara e, em particular, para nivelar os atos da família real. O próprio léxico, ao alternar o registo literário e técnico com o calão, mostra que aquelas altezas eram postiças.
Em conclusão, este narrador para nos iniciar na outra História, necessita de narrar, descrever, comentar e, principalmente, resumir, recapitular… chamar-nos a capítulo, como se fossemos cónegos ou rosa-cruzes.

16.3.12

Pecados capitais

( As ideologias, os temas, o discurso; a paródia, a carnavalização, a intertextualidade… )

Na capital do reino (ou da república), a gula de uns tantos devora os restantes:  «é uma boca que mastiga de sobejo para um lado e de escasso para o outro, não havendo portanto mediano termo entre a papada pletórica e o pescoço engelhado». (Implícitas fluem a ideologia e a retórica do Sentimento dum Ocidental de Cesário Verde.)

«Porém, a Quaresma, como o sol, quando nasce, é para todos.» (José Saramago, Memorial do Convento, cap. III)

Quando se esperava que a abstinência fosse respeitada por ricos e pobres, o narrador descreve-nos uma «procissão de penitência» que, em vez de  redimir dos excessos do Entrudo, escancara a lascívia dos penitentes em poses sado-masoquistas prometedoras de futuras orgias com as histéricas espectadoras de janela e varandim – «que Deus não tem nada que ver com isto, é tudo coisa de fornicação».

A «procissão de penitência» não cumpre os ditames de Deus e da Igreja, e o tempo é de hipocrisia e de mentira: senhoras e criadas, cúmplices na satisfação da carne adúltera, enxameiam igrejas, confessionários e lugares escusos, deixando «em casa uns tantos maridos cucos», destino a que nem D. João V terá escapado: «D. Maria Ana, como razões acrescentadas de recato, tem a mais maníaca devoção com que foi educada na Áustria, e a cumplicidade que deu ao artifício franciscano, assim mostrando ou dando a entender que a criança é tão filha do rei de Portugal como do próprio Deus, a troco de um convento.»

Perante a mentira colossal que corrói a realeza, a igreja e o próprio povo, o narrador termina o discurso, revoltado, não contra Deus, mas contra os homens: «talvez se nos calássemos todos». E entre estes homens, estamos nós em qualquer século em que sejamos…

15.3.12

O aeróstato e o ponto de vista

Na verdade, o padre Bartolomeu Lourenço inventou o aeróstato, apresentando-o com sucesso, e para estupefação da corte de D. João V, no dia 8 de Agosto de 1709. E essa novidade foi decisiva não só para o desenvolvimento da aeronáutica mas, sobretudo, para a deslocação do ponto de vista na narrativa. ( Seria interessante, analisar o modo como a ciência e a tecnologia servem o projeto de escrita de José Saramago.)

Basta ver como Saramago, consciente do contributo daquele invento, nos faz viajar sobre Portugal no Memorial do Convento, capítulo XIX: «Muito melhor veríamos, e muito mais, se olhássemos de alto, por exemplo, pairando na máquina voadora sobre este lugar de Mafra (…) não há melhor miradouro que este onde estamos, não faríamos ideia da grandeza da obra se o padre Bartolomeu Lourenço não tivesse inventado a passarola». ( E toda a panorâmica aérea nos é dada, como se fosse um grande plano, num único período.)

No essencial, Saramago, ao deslocar da terra para o espaço aéreo o ponto de vista, constrói uma representação da excentricidade e megalomania reais a que o homem coevo da edificação do convento não teve acesso, o que sobrepõe de forma magistral o plano do discurso ao plano da história.

A leitura desta obra pressupõe, assim, o desenvolvimento da competência de análise da ideologia do narrador que, a cada passo, parodia a História oficial, seja do século XVIII seja do século XX.

PS: Se aqui registo estas palavras é porque considero que, nas nossas escolas,  a leitura  da obra de Saramago está a ser vítima de uma enorme mistificação que acabará por condenar o autor ao esquecimento. É só uma questão de tempo. Veja-se por onde andam Ferreira de Castro, Aquilino Ribeiro, Miguel Torga, Agustina Bessa Luís…

8.3.12

Algures no infinito…


Entre 1955 e 1973, Jorge Luís Borges foi diretor da Biblioteca Publica de Buenos Aires, situada durante um certo tempo na calle México. E foi lá que ele “perdeu” “El Libro de Arena” cuja posse se revelara um pesadelo, pois «el mejor lugar para ocultar una hoja es un bosque».
A estória  do livro sem princípio nem fim (como se de areia se tratasse) acompanha-me enquanto, finalmente, cumpro o habitual circuito pedestre. Só que  o infinito surge-me como uma ideia doce. O que me pesa é o finito! Nem a possibilidade de estar à deriva me agita. Pensar em Deus tranquiliza, porque estou certo que ele, ao encontrar-se algures no infinito, não está preocupado comigo… Eu não passo de uma folha perdida no bosque!
Tudo o que é finito me assusta. Se tenho que classificar 25 provas, entro em depressão: o número limitado de perguntas sufoca-me; o número previsível de erros assusta-me. Vou ter que acabar a tarefa, sabendo que, amanhã, continuo refém.
De certo modo, estou a aprender que mais valia que a dívida portuguesa fosse infinita. Passos Coelho, ao convencer-nos que as folhas do livro da dívida  são quantificáveis, deixa-nos à míngua e torna-nos cativos de nós próprios…
Afinal, Sócrates sabia do que falava. Provavelmente, algum assessor tinha lido El Libro de Arena de Borges e, em particular, a estória Utopia de un hombre que esta cansado.

23.2.12

«Numa rua perto (…) Não correu mais sangue.»



«(…) esperou que Baltasar terminasse para se servir da colher dele, era como se calada estivesse respondendo a outra pergunta, Aceitas para a tua boca a colher de que se serviu a boca deste homem, fazendo seu o que era teu, agora tornando a ser teu o que foi dele, e tantas vezes que se perca o sentido do teu e do meu, e como Blimunda já tinha dito que sim antes de perguntada, Então declaro-vos casados.» José Saramago, Memorial do Convento, pág. 56, 16ª edição

18.2.12

Ao entardecer…

O arame farpado bloqueou-me a voragem…

Entretanto, concluo a leitura da enciclopédia ficcional de Roberto Bolaño, A Literatura nazi nas américas,  e fico a pensar na excentricidade, na megalomania, na violência e na irracionalidade daqueles monstros que povoam o continente americano, e cujas raízes ora se escondem ora se revelam na europa…

E claro, o plágio é tão comum que, a páginas tantas (125), acabei por chocar com «o Pessoa bizarro das Caraíbas», cuja morte o encontrou «a trabalhar na obra póstuma dos seus heterónimos.» ( Max von Hauptmann)

(De facto, Roberto Bolaño convida-nos à voragem do entardecer!)

11.2.12

Citação e paródia

Gustavo Borda (Guatemala, 1954-Los Angeles, 2016) respondeu um dia a quem lhe reprovava a inclinação germânica: «Fizeram-me tantas crueldades, cuspiram-me tanto, enganaram-me tantas vezes que a única maneira de continuar a viver e continuar a escrever era transferir-me em espírito para um sítio ideal…» Ora, na paródia do chileno Roberto Bolaño, esse lugar ideal é a Alemanha nazi.
Se cito, aqui, A Literatura nazi nas Américas, ed. Quetzal, é porque  o complexo de inferioridade portuguesa cresce à medida que o  número  de políticos e comentadores germanófilos aumenta. Os sinais da bota estão por todo o lado… e da democracia à ditadura vai um passo por enquanto enluvado…
A paródia recria os sinais, invertendo-os, mas não os faz desaparecer. Rimos, mas apetece chorar! A comédia alegra-nos, mas o que nos espera é a tragédia.
Roberto Bolaño (1953-2003) viveu exilado desde o início da ditadura de Pinochet, primeiro no México, depois nos Estados Unidos, para, finalmente, se instalar em Espanha. Internacionaliza-se com Os Detetives Selvagens, obra marcada pelo romance Paradiso do cubano Jose Lezama Lima. Em 1996, publica Literatura Nazi en America, novela escrita como se fosse um dicionário de autores admiradores e defensores do nazismo… As criaturas impressionam pelo seu realismo e respetiva loucura!
Para compreender este tipo de escrita (paródia) vale a pena ler: Vidas Imaginárias de Marcel Schwob; Spoon River Anthology de Edgar Lee Masters; Manual de Zoologia Fantástica de Borges ou A História Universal da Infâmia, também, de Borges.
As criaturas de Bolaño são mesmo infames porque vivem connosco e nós não as vemos e por isso vale a pena seguir o destino das personagens saídas do inferno do nosso destrambelhamento… da nossa inferioridade.

31.12.11

Tempo de descristalização

31 de diciembre de:

Em dezembro 2011, começo finalmente a leitura de um conjunto de ensaios de Unamuno, publicados pela Abismo, com o sugestivo título Portugal, Povo de Suicidas.

Mal entro no livro, esbarro no elogio da  poética de Eugénio de Castro, e, em particular, do poema trágico, em VII cantos, Constança (1900). Eugénio de Castro, ao adotar o ponto de vista de Constança, constrói uma heroína angelical cujo percurso, apesar do ciúme dilacerante´e a certa altura vingativo, se faz através da superação da dor e do despojamento total: Oh! que morte ditosa lhe deu Pedro!/ Mas eis que vê Inês…/ Oh! não, não deve / Para a cova levar aquele beijo! // – «Anda cá, minha Inês…» diz co’um sorriso/ de infinita doçura; nos seus braços / acolhe a linda Inês, abraça-muito, / Dá-lhe o beijo de Pedro, e logo exala, /Serenamente, o último suspiro… //

Para quem se habituou a seguir “os amores de Pedro e de Inês” através das versões literárias de Fernão Lopes, António Ferreira e de Camões, a visão romântica e, por vezes, profundamente erotizada traçada por Eugénio de Castro, convida-nos a abordar o mito de uma forma mais heterodoxa, e por isso, talvez, mais realista. A riqueza do mito literário resulta mais da inventiva do autor do que da história ou da lenda. E sobretudo da descristalização da tradição literária!

Subitamente, a viagem literária, em dezembro, trouxe-me, através de Unamuno, Eugénio de Castro que, neste declinar de 2011, volto a citar, pois a epígrafe com que abre A Sombra do Quadrante (1906) me parece inspiradora:

Murmúrio de água na clepsidra gotejante, / Lentas gotas de som no relógio da torre / Fio de areia na ampulheta vigilante, / Leve sombra azulando a pedra do quadrante / Assim se escoa a hora, assim se vive e morre… // Homem, que fazes tu? Para quê tanta lida, / Tão doidas ambições, tanto ódio e tanta ameaça? / Procuremos somente a Beleza, que a vida / É um punhado infantil de areia ressequida,/ Um som de água ou de bronze e uma sombra que passa… //

PS: Bem sei que os Dicionários não registam o termo “descristalização”, mas se lhe inspecionarem os bolsos, verão a riqueza escondida.

30.12.11

A Sul. O Sombreiro, de Pepetela

Dos ossos perdidos de Diogo Cão à morte do temível Governador e fundador do efémero e mortífero reino de Benguela, Manuel Cerveira Pereira, tudo decorre entre morros e rios.

Pepetela, em A. Sul. O Sombreiro (set. 2011), reinventa os excessos dos governadores ao serviço da dinastia filipina, a luta entre franciscanos e jesuítas, em nome do Papa romano, a emancipação dos mestiços, a desjagarização, sobretudo das mulheres jagas…

Neste romance, o autor viaja  com grande liberdade pela história do século XVII e, ao mesmo tempo, vai revelando um vasto território, inicialmente, ameaçado pelos europeus e pelos jagas, e que o tempo acabará por eliminar…

Do ponto de vista da construção da narrativa, Pepetela dá a voz à maioria dos protagonistas masculinos, desde os governadores Cerveira e Mendes Vasconcelos a Carlos Rocha, o mulato que foge do próprio pai, passando pelo franciscano Simão Oliveira, sem descurar os provinciais da Companhia de Jesus… Só as  «peças» não têm voz – caçadas à ordem de governadores e de jesuítas – são vendidas e enviadas para as fazendas e engenhos brasileiros, como qualquer outra matéria prima. Aliás, são mais valiosas que a prata, o cobre e o sal!

Como acontece noutros romances do mesmo autor, a sátira domina em A Sul. O Sombreiro, título razoavelmente enigmático: a realeza espanhola, as ordens religiosas, os governadores, os chefes militares, os ouvidores, todos agem com um único objetivo: enriquecer. E por isso a justiça ajusta-se à voz do dono… Dos nativos, apenas os jagas, espartanos, são retratados como desumanos, pois cultivam a eliminação dos afetos.

Em síntese, mais um romance didático cujo principal objetivo é legitimar a existência da nação angolana, forjando a angolanidade através do recuo na história, de tal modo que a presença portuguesa acabará por não passar de um triste episódio…

Quanto ao “sombreiro”, nunca alcançado, penso que Pepetela não deixará de o retomar num dos próximos romances – esse cabo que, afinal, esconde os ossos de Diogo Cão – o mito fundador provisório na mitologia de Artur Pestana. 

18.11.11

No mesmo beliche?

A mediatização da investigação e da decisão judicial cria no leitor / espectador a ideia de que a justiça é açambarcada por meia dúzia de figurões que investigam, defendem, acusam e decidem de acordo com o estatuto dos arguidos.

Não se entende porque é que defesa, acusação e decisão são sempre entregues aos mesmos, ou será que o poder mediático é tão poderoso que cria e encena os casos, escolhendo os atores e impondo a decisão?

De qualquer modo, parece-me que a mediatização distorce o exercício da justiça e, sobretudo, aprisiona os decisores, impedindo-os de decidir em liberdade.

E esta última ideia – a de uma justiça amordaçada pelo poder político e, simultaneamente, ignara e presumida -  está muito bem retratada no romance Quando os Lobos Uivam (1958), de Aquilino Ribeiro.

Considerando a quantidade de temas investigados anualmente, em dissertações de mestrado e de doutoramento,  interrogo-me se alguém já decidiu investigar quantos dos intervenientes no inquérito e na decisão judicial já leram Quando os Lobos  Uivam.

A separação de poderes e o seu exercício em liberdade pressupõem uma formação humanística que, infelizmente, tem sido descurada.

15.11.11

O sonho e a dor…

«As nações todas são mistérios / Cada uma é todo o mundo a sós.» Fernando Pessoa, D. Tareja, in Mensagem

Com nome próprio só duas mulheres figuraram em Mensagem – duas estrangeiras, as mães fundadoras, D.Tareja e D. Filipa de Lencastre. Por outro lado, anónimas e sofredoras, as mães e as noivas sacrificam-se para que a vontade divina seja satisfeita pelo homem, o infante, a quem compete sonhar, isto é, colocar-se em linha com Deus.

Mas, sem Deus nada acontece!

Portugal entristece porque há muito deixou de ser o povo eleito ou, se reformularmos o problema, porque, afinal , não passa de uma criação estrangeira, a que falta a alma…

Apesar da matriz europeia, Pessoa valoriza acima de tudo o sonho e a dor. Sem eles, o mistério português extinguir-se-á definitivamente.

28.9.11

As flores do Poeta…

Um poeta tradutor, se por um lado corre o risco de matar a criação, por outro arrisca tudo ao ocupar o lugar do feiticeiro que antecipa as chuvas que fazem a glória do rei.

Este tradutor é modesto, pois não se pensa singular, e, ao mesmo tempo, não abdica de dar voz (asas) a uma realidade de pés descalços, seca, sem hino e sem bandeira, mas que, no antigamente, transformava cada semente em flor. Tudo como se o presente tivesse perdido o rumo ao deixar-se formatar por estranhos lugares-comuns.

E quem poderá traduzir essa vontade de regresso ao tempo solidário?

Na verdade, só a semente / oferece flores, mas, para que isso aconteça, o chão (o poeta) terá de ser permeável às chuvas.

Ser ponte, voltar atrás, parece ser o caminho escolhido pelo “palavrador” Mia Couto, em Tradutor de Chuvas,  pois a verdade reside num tempo definitivamente perdido, a não ser que as chuvas façam germinar as sementes…

O papel / antes do poema, / é um chão depois da chuva. // O idioma do grão / lavra a caligrafia do pão.//

Em conclusão, apesar de nem todos os poemas serem flores, fica-nos a lição da semente…, embora haja quem nela tenha visto uma prova de machismo, que, creio, precipitado!  

9.8.11

O Arcanjo Negro

No Algarve, em pleno século XXI, o comboio é servido por uma única linha, por electrificar… Não se entende como é que a região que acolhe anualmente mais portugueses e estrangeiros não exige ao poder central uma ferrovia moderna e “amiga do ambiente”.
Para acompanhar o atraso que testemunho a cada passo, mesmo quando os governantes sonham com o TGV, continuo a ler Aquilino Ribeiro – homem que, no seu tempo, sempre lutou contra a subserviência…
No romance O Arcanjo Negro, terminado em 1939-1940, a acção decorre em Lisboa e arredores, sempre com o Tejo dianteiro, entre 1925 e 1929. De acordo com o autor, o objectivo era concluir o estudo do casal lisboeta, encetado com Mónica.
Mónica, que tem metade da idade de Ricardo, sofre os ímpetos do ciúme do marido que, progressivamente,  lhe aprisiona os movimentos e as ideias, transformando-a numa “monja” incapaz de se libertar do labirinto psicológico em que vai mergulhando. Em nome da ordem burguesa, sufoca a libido, desenhando espaços fechados, em que os  protagonistas se anulam
Para além de apresentar três novelas sentimentais, Aquilino retrata o clima insurreccional que crescia no final da 1ª República, descrevendo, pelo menos, duas revoltas fracassadas que, no essencial, visavam restaurar a utopia republicana, mas que falham, pois a maior dificuldade era encontrar o «homem clarividente» que desse sentido às aspirações dos “revolucionários”.
Essa falha de clarividência parece ser explicada pela natureza do homem português: indigente, doentiamente romântico, hipócrita, megalómano e, finalmente, mafioso ou simplesmente ladrão de ocasião.
É deste modo que as personagens se vão perdendo, quase sempre vítimas de cegueira mental, sem espaço de fuga ( a não ser a misteriosa “água-pé da terra natal de Afonso Ruas – Carvalhal do Pombo !!?). Nem o amor as salva!
Para Aquilino Ribeiro, a redenção estaria no aniquilamento da raça para, depois, começar tudo de novo…Nem Freud escaparia…
MCG

12.7.11

ALDEIA, Aquilino Ribeiro

Vou dar a leitura de ALDEIA (1946) por terminada. Uma obra difícil de classificar! O autor atribuiu-lhe o subtítulo “Terra, Gente e Bichos”, o que me parece adequado, pois retrata a terra montanhosa e pobre, frequentemente, na perspectiva do caçador, a gente lapuza e improgressiva, ignorante, violenta e néscia, e, finalmente, os bichos solidários, se domésticos, e ameaçadores – os lobos.

O conhecimento da terra, da gente e dos bichos é genuíno. O autor inquiriu de tal modo cada um dos temas que a nomeação e a qualificação se revelam terminologicamente precisos e sistémicos, obrigando o leitor a um efectivo esforço metalinguístico.

O ponto de vista de quem – supostamente influente – abandona o Chiado para mergulhar na serra da Nave, é implacável para com a Gente da ALDEIA, boa fornecedora de estórias de pedintes, espoliadores, parricidas, salteadores sanguinolentos, mas incapaz de contrariar o atávico mimetismo que faz das serras testemunho de tempos imemoriais. ( Os antropólogos deviam ter a obra de Aquilino Ribeiro como leitura propedêutica!)

São 15 capítulos, ligados pela Terra, que apresentam a origem, as tradições, a força dos elementos, o comunalismo primevo, estórias de torna-viagem, a acção dos caciques e, sobretudo, a miséria de um país que resiste à mudança…

São 15 capítulos cuja leitura é, muitas vezes, lenta porque nos distanciámos das coisas e dos seres, e, sobretudo, porque, ao perdemos a língua das Gentes, ficamos irremediavelmente desenraizados.

12.4.11

A Gramática é uma canção doce…


Uma leitura recomendada a todos os meninos e meninas que ainda não concluíram o 6º ano de escolaridade. Recomendo-a também a todos os professores que um dia, no âmbito da avaliação pedagógica regulamentar, ouviram: « – A senhora não sabe ensinar. Não respeita nenhuma das instruções do ministério. Nenhum rigor, nenhum espírito científico, nenhuma distinção entre o narrativo, o descritivo, o argumentativo.(…) Minha cara amiga, precisa rapidamente de uma boa actualização
E, sobretudo, recomendo este romance a todos os classificadores que têm sido enviados para o SECADOURO: «Eu compreendera: uma turma inteira de professores. Submetiam-se a um desses famosos tratamentos de cuidados pedagógicos. Pobres professores!»
Je suis né à Paris, le 22 mars 1947 (de mon vrai nom Erik Arnoult), d'une famille où l'on trouve des banquiers saumurois, des paysans luxembourgeois et une papetière cubaine. Après des études de philosophie et de sciences politiques, je choisis l'économie. De retour d'Angleterre (London School of Economics), je publie mon premier roman en même temps que je deviens docteur d'État. Je prends pour pseudonyme Orsenna, le nom de la vieille ville du Rivage des Syrtes, de Julien Gracq.

27.3.11

O outro visto por Pepetela e por João Tordo

E se a ficção coincidir com a realidade? Só a lonjura do exílio poderia criar o equívoco, mas, de facto, é sempre possível encontrar um Jeremias Cangundo nem que seja nas LETRAS PERIGOSAS de Pepetela, que, nesta “estória”, continua a ajustar contas com os escritores aburguesados que, depois de longo exílio voluntário, regressam à procura de reconhecimento e dinheiro…

Partir, por cobardia ou por força das circunstâncias, pode trazer problemas inultrapassáveis. Nunca sabemos quem iremos encontrar. E, sobretudo, se acreditarmos que o outro é, por natureza, acolhedor.

A verdade é que, em terra estranha, a diferença de pele, de religião, de língua pode trazer ódio, perseguição e morte. ELSA, narrativa de João Tordo, retrata exemplarmente a vida de um emigrante africano numa sociedade multicultural como a britânica, tradicionalmente acolhedora e, simultaneamente, segregadora… o apartheid continua vivo, apesar de politicamente inaceitável…

PS: A D. Quixote lançou, em 2009, a antologia “Em Busca da Felicidade”, constituída por dez “flores”, apesar de algumas já terem nascido murchas. No entanto, vale a pena colhê-las.

/MCG

3.3.11

Gente desditosa…

Ler “Portugal Ensaios de História e de Política”, de Vasco Pulido Valente exige perseverança e uma grande dose de masoquismo. Do Liberalismo Português a Cunhal Revisitado, o autor traça um retrato implacável dos governantes que, salvo raríssimas excepções, revelam uma visão retrógrada e / ou formatada por modelos estrangeiros. Eternos Dâmasos Salcedes, os governantes imitam as ideias e as modas estranhas numa busca incessante de um pedestal há muito perdido e, deste modo, infligem ao povo uma vida de miséria e, frequentemente, de morte.

As revoluções mais não são do que frustres insubordinações de quem já não suporta mais um poder caduco que, tendo delapidado os recursos, continua refém de ideologias totalitárias, e que, por sua vez, procedem à redistribuição sôfrega dos lugares e dos recursos, aperreando a classe média e desprezando o povo.

V.P.V. mostra um país falido, ignaro, beato, submisso, incapaz de separar o trigo do joio.

A publicação, em 2009, deste conjunto de ensaios acaba por ser o modo encontrado por V.P.V. para nos demonstrar que, filhos do marcelismo, do movimento do MFA ou de Cunhal, perdemos a noção da verdadeira dimensão de Portugal, continuando a ser governados pelo irrealismo, pela demagogia e, no limite, pela loucura de quem se imagina senhor do mundo, não passando, afinal, de gente mesquinha.

30.12.10

Cheguei ao fim…

Cheguei ao fim da Correspondência (12.11.1971). À data, «as portas entreabriam-se (por quanto tempo?) e toda a gente se lançou a publicar cada vez mais ousadamente. A política e o sexo vão de vento em popa.» Carta 159 (José Saramago).

Ao mesmo tempo que a Censura parecia desmobilizar, Saramago via-se desfeiteado pelos novos patrões da Editorial Estúdios COR que decidiram admitir um novo director literário – Natália Correia – sem lhe dar qualquer satisfação. E por isso Saramago « cansado de carambolar entre a editora e os autores… (…) e do franciscanismo tolo e ingénuo que tem sido o meu» (…)  demitiu-se.

Por seu lado, Miguéis, à beira dos 70 anos, adoentado e cada vez mais esquecido, continua à procura de novos caminhos literários e editoriais, sem deixar de zurzir nos literatos portugueses em que inclui Mário Dionísio: «Segundo o pobre do Mário Dionísio – tão mau pintor como mau poeta – para quem também deixei de existir – o rótulo importa mais que o vinho da garrafa»

Miguéis não deixa, no entanto, de separar o trigo do joio, embora, curiosamente, nestes 12 anos de correspondência não haja uma única referência a Fernando Namora, ao declarar ao amigo Saramago:

« Não creio que nenhum outro cronista nosso escreva hoje de maneira tão toante, directa e moderna – e tão bem! -  sobre os pequenos e grandes quotidianos da nossa vida: humanidade, ironia, e um pessimismo sorridente, isento de amargura.» Carta 160.

Miguéis, ao comentar Deste Mundo e do Outro, antevia já o lugar primeiro a que Saramago se alçaria, ofuscando todos aqueles que, de algum modo,  se habituaram a vê-lo como o servo em vez do senhor.

PS: Um Bom Ano de 2011 para todos! e, em particular, para o discreto e fugidiço José Albino Pereira. 

28.12.10

O resto é opinião…

Continuo a ler sofregamente a Correspondência trocada entre José Rodrigues Miguéis e José Saramago. É deliciosa pela informação que nos dá sobre as angústias do “senhor” e do “escravo”, do rigor  e do pragmatismo anglo-saxónicos, do laxismo e do esbanjamento portugueses; da intelectualidade postiça e invejosa; da crítica presunçosa e maldosa que imperam na “pátria”… De facto, aos olhos dos correspondentes, pouco ou nada se salva naquele Portugal de 1959 a 1971… à beira-lágrima plantado.

(Das 166 cartas, já devorei 116, sem necessitar da caruma para lhes pegar fogo!)

E para não ser maçador, referindo-me à chatice da actualidade política e económica,  termino com as sábias palavras de J.R.Miguéis:

O homem é a obra e só vale por ela. O resto é opinião, isto é, paisagem: disso temos para dar e vender, sofremos de «opinião fácil»…