7.4.15

Enterrado num poema

 (...) «queria fechar-se inteiro num poema
lavrado em língua ao mesmo tempo plana e plena
poema enfim onde coubessem os dez dedos
desde a roca ao fuso
para lá dentro ficar escrito direito e esquerdo
quero eu dizer: todo
vivo moribundo morto
a sombra dos elementos por cima»
Herberto Helder, A Morte Sem Mestre, 2013

Ninguém está livre de ansiar um pouco mais, mas casos há em que o anseio é obsessivo, doentio. Até os pássaros intuem que há um momento em que é necessário que as crias experimentem o voo e esse é o dia das aves...
O poema lavrado em língua plena solta-se e foge, foge dos cemitérios, lavrados em língua plana.

Se a poesia puder ser pão, sê-lo-á, mas não para o poeta... não vão os versos ter o mesmo destino da padeira...

6.4.15

Fantasia literária

«a burro velho dê-se-lhe uma pouca de palha velha / e uma pouca de água turva / e como fica jovem de repente durante cinco minutos!» Herberto Helder, A MORTE SEM MESTRE, 2013

Não me parece que o burro recupere a juventude assim tão facilmente! Ainda se se lhe  desse uma medida de favas ou de cevada... 
A palha velha e a água turva é que o levam ao desfalecimento.

Em tempo de deslumbramento, andam à solta tantos burros que me apetece servir-lhes uma fava rica, a ver se se deixam de disparates...
Diz o provérbio que a sabedoria humana tem limites; a burrice, por sua vez, é infinita.



5.4.15

A palavra 'ressurreição'

«Posso mudar a arquitectura de uma palavra. / Fazer explodir o descido coração das coisas./ Posso meter um nome na intimidade de uma coisa / e recomeçar o talento de existir.» Herberto Helder, Poemacto, IV, 1961

Posso escrever aqui a palavra 'ressurreição', observá-la de perto, imaginar-lhe o movimento e a sombra em transformação. Posso confirmar que, em 1961, me era mais fácil aceitá-la como expressão de uma evidência por questionar, mas nunca me passou pela cabeça, virá-la do avesso, amputá-la do coração... A palavra 'ressurreição' entrou-me em casa, sem atravessar qualquer rio tejo, nem sob a forma de uma qualquer barca que atravessasse o mundo...
A palavra 'ressurreição', cercada de palma e de ramos de oliveira, com chagas onde os meus dedos se recusaram penetrar, existe excessivamente no meu calendário...
Para mim, a palavra 'ressurreição' não tem essa seiva regeneradora em que o Poeta parece acreditar...  

4.4.15

A Sammy caiu do telhado

A Sammy caiu do telhado. Dizem que foi o vento que a empurrou... Na calçada sangrava abundantemente, sem se saber a extensão das lesões. Os samaritanos levaram-na para o hospital mais próximo onde, depois de analisada e anestesiada, foi operada a uma pata..., sem esquecer a boca maltratada...
Entretanto, convalescente, foi levada para casa onde impacientemente espera que a libertem da tala metálica e, sobretudo, do colar de freira que lhe aumenta a fome e a sede...

A Sammy consta que já é figurante no filme do Márcio Laranjeira, Uma Rapariga da Sua Idade"... Quem quiser conhecer a Sammy não deve faltar à apresentação deste filme, na Culturgest, no dia 29 de abril, às 21h30...

Por este andar, a Sammy ainda vira protagonista!

Estou de plantão!

Estou de plantão!
Noutros tempos, castrenses, também comecei por ficar de plantão.
Noutros sonhos, mais antigos, via-me-me de plantão a uma sineta... uma fantasia com cor real!
E tempo houve, de infância, que fiquei de plantão a um berço, não fossem as cobras asfixiar a criança.. Esse foi um tempo em que as camisas do milho desataram a arder, os cântaros se esvaziaram, sobraram marcas por apagar...

Hoje, continuo de plantão! Um tempo em que nunca sei o que vai acontecer. 
Posso caminhar na rua, ir às compras, pagar todo o tipo de contas, ouvir o que todos têm a dizer-me, porque sabem o que dizer, embora eu já não saiba o que responder...  Posso ler o Poema Contínuo, de Herberto Helder, só não posso partir violenta e violentamente para o campo...

E faz-me falta!
Basta-me colocar os pés sobre o mato, olhar a encosta e depois observar a faina das abelhas, ouvir o chilrear dos pássaros. Ficar ali de plantão durante 10 minutos...

3.4.15

Uma comparação absurda do ministro José Branco

Quando confrontado com a morte de Silva Lopes, José Pedro Aguiar Branco afirmou que «Silva Lopes teve a felicidade de partilhar este momento com Manoel Oliveira» e destacou o economista como figura de relevo na política e economia do país.

Este ministro é um homem que cada vez que abre a boca mais valia que estivesse calado. Por um lado, José P. A. Branco vê na morte um momento de felicidade. Por outro lado, faz uma daquelas comparações absurdas que nem os meninos de coro se atreveriam a fazer...

Se a morte é um momento de felicidade e, já agora, de partilha, este ministro bem poderia aproveitá-lo.

2.4.15

Não a morte, mas o falecimento de Manoel de Oliveira

A duração e a extensão são frequentemente alimento deste blogue. E como tal, seria indesculpável que aqui não assinalasse não a morte, mas o falecimento de Manoel de Oliveira, aos 106 anos de idade.
Habituei-me a encarar a sua obra como a expressão do retardamento da passagem do tempo. Tudo era calculado de modo a evitar o inebriamento futurista.
Sempre que penso em Manoel de Oliveira, recordo a leitura das obras de Agustina Bessa-Luís, em que a suspensão do tempo é uma inevitabilidade.
É um pouco como se quem ama a vida se recusasse a avançar!

1.4.15

O único dia em que sou candidato

Poderia enumerar as tarefas executadas e as que estão em lista de espera, poderia enumerar os aborrecimentos e os desgostos, poderia enumerar as fraquezas e os medos, mas para quê? Se alguém prestasse atenção à enumeração, diria que está incompleta ou que peca por excesso. Ou nem isso, talvez se limitasse a proclamar que não passo de "um queixinhas". 
Não passamos de "uns  queixinhas"!

No dia das mentiras, talvez não seja descabido confessar que, ao fim de mais de quarenta anos nas salas de aula, o melhor seria candidatar-me a deputado, porque, segundo Catarina Madeira e Márcia Galrão*, o que há de mais parecido com o comportamento dos deputados no parlamento é a traquinice dos alunos na sala de aula... E convém não esquecer que ainda há por lá uma campainha estridente, ao contrário do que acontece na escola secundária de Camões, em que a campainha apenas se faz notar nos dias de exames....
Parece até que na Assembleia da República há queixinhas famosos...  

* Estes Políticos devem estar Loucos, a esfera dos livros.

31.3.15

Os homens sentados


 (Região de Saúde Lisboa e Vale do Tejo)

O novo Centro de Saúde de Sacavém está situado em Moscavide, quase escondido... Sobretudo para quem mora na Portela... Os acessos estão prontos, mas encerrados! Provavelmente, serão abertos numa futura ação de campanha eleitoral, lá mais para o verão... Resta saber quem é que irá cortar a fita. 

Não quero crer que seja o presidente do município de Loures, Bernardino Soares*, que acabo de ver referido no livro Estes Políticos devem estar Loucos, pág. 145, de Catarina Madeira e Márcia Galrão. 
Um livro que mostra à evidência a boçalidade de muitos daqueles que, ao longo dos tempos, se foram sentando na bancada do governo e nas cadeiras parlamentares, apesar de, no prefácio, João Mota Amaral, ter esperança que esta obra ajude, não os leitores, mas os eleitores:
«E assim recolhem os eleitores uma imagem dos seus deputados mais humana e próxima, que espero contribua para melhorar a simpatia dos Portugueses para com o Parlamento, que os representa no exercício supremo da soberania de Portugal.»

* Mas era Bernardino Soares quem fumegava cada vez que Gama concedia a Nuno Melo o direito de «defesa da honra», pois ele, fiel cumpridor das regras parlamentares, jamais fintaria o árbitro para levar o jogo ao prolongamento.    Esclareça-se «defesa da honra da bancada.»

Pessoalmente, compreendo que o parlamentar possa ter necessidade de «defender a honra», sobretudo quando maltratado pela sua bancada. Mas, quanto à «honra da bancada», tenho dificuldade em reconhecê-la, até porque ela, em regra, asfixia a liberdade do deputado.

A estrada da liberdade existe, mas o acesso está encerrado...      

30.3.15

Lisboa degradada e doente...

No centro da capital, a irregularidade do piso já tem barbas. Nem os milhares de turistas que por ali circulam comovem os dirigentes do município!
As duas fotos que aqui deixo são de um hospital da capital. Numa, à vista e à mão de todos, o contador do gás da instalação hospitalar. Na outra, o pavilhão que acolhe os utentes que ali se veem obrigados, amontoados, a esperar longamente pelas análises ao sangue... Se, para infelicidade sua, precisarem de fazer no mesmo dia um raio X e um eletrocardiograma, então os utentes devem levar bússola ou gps...



Em síntese, os sinais de degradação urbanística proliferam por toda a parte... E a população cada vez mais doente, mais conformada, senão mesmo anestesiada...
Infelizmente, o presidente do câmara, que quer governar o país, não foi capaz nestes últimos anos de pôr termo à derrocada, embora se ufane de, ao contrário do governo, ter diminuído significativamente a dívida do município...
Bem sei que o senhor presidente sempre poderá responder que a culpa da irregularidade do piso é das colinas, e que a culpa da degradação dos hospitais é do governo pois não avançou com a construção do grande hospital central de Lisboa. Até porque os atuais terrenos hospitalares poderão vir a ser o novo "ouro" do município... 

29.3.15

Dúvida metódica

Quais são os objetivos de uma dissertação de mestrado nos tempos que correm?
O que é que distingue uma dissertação de mestrado de uma dissertação de doutoramento?
No passado, o candidato para poder concluir uma licenciatura (agora, segundo ciclo de Bolonha) ou progredir na carreira académica tinha de ser capaz de investigar, apresentar por escrito e defender oral e publicamente a sua pesquisa...
E hoje, será que tal acontece?
No atual sistema de ensino superior, quem é que garante que os mestrandos e os doutorandos são devidamente orientados?

Estas perguntas são obviamente de natureza retórica, só não compreendo por que motivo as coloco, aqui, por escrito...

28.3.15

Se houvesse mais rigor...

Como referi ontem, cheguei atrasado ao teatro, e acabei por regressar a casa com a sensação de que a pontualidade é essencial, mas que esta pode não passar de um gesto disciplinador menos importante do que, por vezes, se pensa...
Na verdade, nos últimos anos, tenho-me esforçado por ser pontual, porém deixei de cobrar os atrasos com que me confronto diariamente, em termos familiares, profissionais...
Gostaria, sim, que houvesse mais rigor no tratamento dos assuntos, na realização das tarefas e na satisfação dos compromissos...
Se tal acontecesse os dias seriam menos penosos!
Mais do que ser pontual, há que ser rigoroso e não desistir da perfeição. Mas nada disso acontece... a imperfeição tornou-se uma marca de água... e pelo caminho vão ficando as vítimas.
Creio até que o meu próprio coração já começa a dar sinais de impaciência, e eu finjo que não o oiço nestes dias penosos que atravesso...

27.3.15

Atrasos...

Quem me conhece, sabe que detesto atrasos. No entanto, hoje, sexta-feira, saí demasiado tarde de casa para assistir a um espetáculo no número 99 da Calçada Marquês de Abrantes, Lisboa. Além do mais, o excesso de trânsito, a falta de estacionamento e a minha inexistente vida noturna dificultaram-me a tarefa de dar com o lugar...
De qualquer modo, cheguei às 21 horas e cinquenta e cinco minutos. A porta encontrava-se fechada, e sob a campainha uma pequena nota: SILÊNCIO POR FAVOR. O ESPETÁCULO ESTÁ A DECORRER. 

Compreendo que não se deve perturbar os artistas, mas...

26.3.15

A lógica das hipóteses sem regresso

Os OUTROS apagam-se enquanto o EGO CRESCE... Se nada existe para além da vida breve, de que serve respeitar o que está para além do EGO?
O plural NÓS esfuma-se a cada dia que passa, apesar da multiplicação das redes sociais... A partilha é virtual e, como tal, o EGO não vai além da simulação... A imaginação deixa-se subordinar à lógica das hipóteses sem regresso...
Partimos, podemos até ser sorteados para partir, como aconteceu com os jovens alemães, estudantes de espanhol, só que, ao lado, há quem determine que aquela é uma viagem sem retorno...
Infelizmente, quando o EGO CRESCE, os OUTROS apagam-se... 
E o pior é que esta situação acontece todos os dias e por toda a parte. 

25.3.15

O Angolano que Comprou Lisboa, de Kalaf Epalanga

Este rabisco é dedicado ao Rafael Marques (nesta hora de provação) e ao Kamba Reis...

Tenho estado a ler com bastante interesse o livro de crónicas de Kalaf Epalanga, O ANGOLANO QUE COMPROU LISBOA (POR METADE DO PREÇO) e, por coincidência, deparei com uma extensa entrevista publicada na revista Tabu... Pode dizer-se que Kalaf, na entrevista, não desmente o ar desempoeirado e atrevido que podemos respirar em cada uma das suas 55 crónicas...
Aprecio na escrita de Kalaf a concisão e, sobretudo, a regeneração da língua portuguesa ao introduzir, de forma plástica, termos oriundos de diferentes quadrantes geográficos e artísticos, designadamente das áreas da moda e da música de inspiração angolana... 
Em termos temáticos, estas crónicas bem poderiam ser objeto de apreciação dos nossos estudantes pela desenvoltura com que Kalaf aborda as questões da identidade angolana, da migração, da discriminação, do provincianismo e do cosmopolitismo, sem esquecer o olhar apaixonado pela cidade de Lisboa... 
Kalaf Epalanga Alfredo Ângelo, aos 37 anos,  revela em cada uma das suas crónicas uma atitude crítica fundamentada, avessa ao racismo, à ignorância e ao mujimbo...
Das muitas passagens que aqui poderia citar, registo aquela que me parece mais adequada, nos dias em que Herberto Helder se tornou notícia:

«E está provado, o belo é aquilo que ninguém percebe, como filmes da Nouvelle Vague, jazz, arquitetura, arte contemporânea... Só os jovens acham feio aquilo que não entendem; os que têm juízo ou vergonha na cara preferem esconder a sua ignorância com expressões do tipo "sim, muito interessante", "profundo", genial" ou ainda o jargão "bué da fixe". Raras são as vezes que admitimos não entender patavina sobre determinado assunto e pedimos para que nos elucidem.» op.cit. pág. 173-174.

24.3.15

Abro o TRÍPTICO de Herberto Helder

Citação (9.1.2014) 
Abro o TRÍPTICO de Herberto Helder  e surge-me o amador de Camões: Transforma-se o amador na coisa amada com seu / feroz sorriso, os dentes, / as mãos que relampejam no escuro.  Traz ruído / e silêncio. Traz o barulho das ondas frias / e das ardentes pedras que tem dentro si./ E cobre esse ruído rudimentar com o assombrado / silêncio da sua última vida./ O amador transforma-se de instante para instante, / e sente-se o espírito imortal do amor / criando a carne em extremas atmosferas, acima de todas as coisas mortas.

E fico a pensar no olhar perdido e petrificado do amador camoniano que, à força de misturar imagens, reprime o desejo e apazigua o corpo, passando a viver do fulgor de um momento para sempre perdido, enquanto que o amador de Herberto Helder, no lugar da imaginação coloca o peso e o vigor do corpo até que a amada  lhe corresponda o grito anterior de amor...

23.3.15

Ao rabisco

Alguém me disse que ando a rabiscar disparates. É provável, embora sinta que muito pior é fazê-los. E disso ninguém quer saber. Hoje é um desses dias em que nem rabiscar apetece. 
Lembro, no entanto, o tempo em que nos finais de setembro espreitava uma oportunidade para poder ir ao rabisco. 
Terminada a vindima, havia sempre um cacho de uva que escapava. E antes que os pássaros se antecipassem, corria as parreiras à procura da última gota de mel, por vezes bem amarga. Pena era que nunca sobrasse um cacho de malvasia ou até de dona-maria...
Hoje é um daqueles dias em que rabisco nostalgia para não ter que denunciar o míldio que destrói a vinha universitária... 

22.3.15

Com a crise...

A persistência pode ser uma prova de vida. Há, no entanto, situações em que se esgota a paciência. E quando tal acontece, é preciso pôr um travão... 
O problema é que, com a crise, as pastilhas deterioram-se de tal modo que do choque das lâminas de aço se levantam faúlhas que acabam por nos incendiar...
(...)
Encaro-o de frente, oiço-lhe a garantia de que não anda a pedir para se drogar, mostra-me os braços como prova, e eu dou-lhe 50 cêntimos. Afinal, ao domingo, naquela rua, não se paga parquímetro. Habitualmente pago muito mais para estacionar e ninguém me explica qual é o destino daquelas moedas.
(...) As ruas de Lisboa são sacos sem fundo. Entramos e já não saímos, a não ser de marcha atrás... E quando a Câmara não instala pilaretes a bloquear a saída, há sempre um automobilista que se encarrega de estacionar à porta de casa...
Creio que vou comprar uma picareta e depois logo se verá!  

21.3.15

Poetastro

Não rima

ainda quando havia trabalho
rimava o malho
se enchia a tulha
mesmo se de hulha...

talvez a poesia
rimasse com maresia
quando amanhecias no cais

agora cais na modorra
a fé dura menos de uma hora...

talvez a poesia
pudesse rimar com melancolia
se o tempo não fosse de agonia...

20.3.15

O Livro dos Homens sem Luz

O Livro dos Homens sem Luz (2004), de João Tordo (n. 1975).

Este primeiro romance é constituído por quatro tempos, com início em 1919 e termo em 1959: Diários de Londres (I); Soterrados (II); Insónia (III); Brighton (IV). 
A maioria dos leitores, ao descobrir este novo romancista, pôs em destaque a sobriedade do léxico, do estilo e da construção, por vezes labiríntica. Entretanto, quanto ao temário, vale a pena destacar a solidão, sobretudo, do homem... embora a mulher se revele mais resistente e audaz, e a dor, sem esquecer a angústia e a náusea
Dir-se-á que o autor quis pôr à prova a resistência humana, explorando os limites e as taras na duração desenhada de forma linear e sequencial. Num século de guerras ( XX), a paz continuou a ser tempo de tortura. Depois da mecanização, da espionagem e da guerra, os emparedados continuaram a ser torturados num universo onde pontificam as soluções apresentadas pelas novas ciências do espírito - a psicologia e a psiquiatria.
No final, em parte incerta, continuam Joseph, Magda e Daniel... talvez, a luz arredia... 

19.3.15

Vais ficando para trás...

Vais ficando para trás. Por enquanto, vislumbro ainda um rosto, sisudo que, em raras horas, se abria para a novidade. Nunca falámos verdadeiramente, havia sempre contas por ajustar... O tempo não era de afetos, horas severas de míngua e de distância...
A partir de uma certa mudança, já não exigias nada, mas creio que ainda esperavas alguma coisa. Depois, numa certa manhã, deixaste de ser capaz de suportar o fardo, e antecipaste a partida e nada mais disseste. Eu ainda esperei sete dias... e partiste novamente a salto e eu fiquei do lado de cá da fronteira...
Vais ficando para trás. Paradoxalmente, eu estou cada vez mais perto...
(No dia do Pai.)

Tem português que é cego e surdo!

De acordo com o Boletim Estatístico hoje divulgado pelo BdP, a dívida pública na ótica de Maastricht, a que conta para Bruxelas, subiu de 224.477 milhões de euros em dezembro de 2014 para 231.083 milhões em janeiro deste ano.

Também a dívida líquida de depósitos da administração central subiu entre os dois meses, em cerca de 170 milhões de euros, de 206.971 milhões em dezembro para 207.143 milhões de euros em janeiro.

Não há dia nem lugar em que os governantes não nos assegurem que a situação financeira e económica recupera de forma sustentada. Perante tal argumento, os portugueses dormem descansados e mesmo os que não têm trabalho continuam, sorridentes, à espera....
Afinal, ignorantes como somos, que importa que a dívida pública tenha atingido, em janeiro de 2015, o valor de 231.083 milhões de euros? 

Entretanto, a contabilista da República assegura que os cofres estão cheios. Quais? De quem?

Tem português que é cego e surdo!

18.3.15

Nunca fomos tão felizes!

Há cada vez menos lugares que não se encontrem sob vigilância ativa ou passiva. Consequência: vivemos no tempo da encenação. Nem os narcisistas podem espreitar o espelho da imperfeição sem que uma sombra lhes perturbe o olhar...
Talvez a máscara pudesse ajudar a preservar a intimidade ou até a naturalidade, mas, nos dias vigilantes, o uso de máscara torna-nos suspeitos.
Por um tempo, a censura interna e externa ocupou-se da tarefa de nos colocar na ordem, e a ambição do homem passou a ser soltar-se, derrubar os muros duramente edificados...

Entretanto, por agora, somos extensões e carregamos próteses de redes que nos prometem que nunca mais estaremos sós. 
Tudo o que dizemos ou fazemos e até sonhamos está sob custódia 24 horas por dia, independentemente do lugar onde nos encontremos...
Nunca fomos tão felizes! 

17.3.15

Dos homens...

Não me parece que «os homens sem luz»  (João Tordo, O Livro dos Homens sem Luz ) sejam semelhantes aos «homens falsos» ( Alberto Caeiro, Se às vezes digo que as flores sorriem). 
Caeiro confessa que escreve,  «sacrifica(ndo-se) às vezes / à sua estupidez de sentidos» porque estes homens, à força de argumentos mais ou menos místicos, insistem em inventar sentidos e tropos sem qualquer cabimento... Os homens, ao soltarem-se da Natureza, tornam-se bipolares: esmagados pela vaidade não resistem à depressão e vivem sós até que a morte os restitua à Natureza...
Por seu turno, «os homens sem luz» vivem em espaços concentracionários reveladores da sua verdadeira condição: bichos que se vão soltando das grilhetas que eles próprios produziram para os seus semelhantes... Libertos da verticalidade, emudecem em pântanos de asfixia...
(...) 
Quando, por instantes, ouço ou leio os títulos das notícias do dia, fico com a sensação de que os homens sacanas de Miguel Cadilhe  não fazem parte nem dos «homens falsos» nem dos «homens sem luz». São de outra espécie ou, melhor, de outra casta mais elevada...

PS. Sobre a origem da palavra "sacana": http://etimoteca.blogspot.pt/2012/12/sacana_19.html

16.3.15

Uma nova tese sebástica

A liberdade tem um preço que nem todos querem pagar.

Esta era a tese e, de repente, uma nova tese, cuja fonte me recuso a citar: « como foi o caso de D. Sebastião que para não enfrentar a guerra e a possível derrota, fugiu às suas responsabilidades como rei.»

Afinal, o rei  Dom Sebastião desapareceu antes de entrar em combate. Provavelmente, nem terá partido. Talvez tenha apodrecido nos cárceres da Santíssima Inquisição, às ordens do Inquisidor-Geral, Cardeal Dom Henrique, demasiado apegado à governação dos assuntos terrenos...

Esta nova explicação da História de Portugal é um exemplo de como a liberdade não tem preço ...
De repente, uma nova verdade saltou dos braços da liberdade! Pode ser uma verdade imperfeita, mas faz sentido... 
(...)
Se o objetivo da perfeição se perdeu na secura das areias, que falta faz o rigor, que falta faz o sentido da responsabilidade?

15.3.15

(Des)apontamento

A - Na Fundação Calouste Gulbenkian, José V. de Pina Martins - Uma Biblioteca Humanista - sob o lema, um pouco pretensioso, Os objectos procuram aqueles que os amam...
A ver até 26 de Maio de 2015.
Trata-se de uma "biblioteca" geográfica, no tempo e no espaço, que procura pôr em diálogo alguns dos vultos mais importantes do humanismo europeu. 
No que me diz respeito, José V. de Pina Martins sempre foi uma fonte preciosa para a abordagem da cultura e da literatura do final da Idade Média e dos séculos XV e XVI. Só que com a passagem do tempo, vi-me obrigado a afastar-me de tal época, um pouco como se o passado fosse causa dos males presentes...

B - Segundo o jornal Folha de São Paulo, na sua versão online, os manifestantes já estão nas ruas em cidades como Rio de Janeiro, Recife, Belo Horizonte, Salvador, Brasília e, até ao momento, os protestos estão a ser pacíficos.
Em causa está a cumplicidade da Presidente (a) do Brasil com a corrupção.
Por cá, há quem diga, na rádio, o que certos meios políticos pensam: AS RUAS SÃO UM SÍTIO PARA ANDAR... Falta-lhes, no entanto, a coragem. 
Por enquanto!

14.3.15

A última viagem

Passo imensas horas a tentar descodificar tortuosas e minúsculas caligrafias. Por vezes, para além de introvertidas, estas caligrafias são expressão de manifesta esquizofrenia... 
E à horrível caligrafia, há que acrescentar uma sintaxe desconexa, resultante não só da dificuldade em coordenar e hierarquizar ideias, mas, sobretudo, de memorização de última hora, apressada e, consequentemente, descontextualizada.
Das palavras e das ideias, é melhor nada dizer ou, em alternativa, substitui-las por EU.

Há por aí quem defenda a leitura global, capaz de estabelecer ligações entre diferentes épocas e o presente do leitor, sem que este tenha de aprender a interpretar de per si cada texto, cada época. Trata-se de aprender a ler, sem aparato, como aqueles turistas que viajam sem bagagem. Basta-lhes o cartão de crédito para pôr cobro a qualquer dificuldade que possa surgir...
Se este for o caminho, a escrita também passará a ser global, semafórica, se tal palavra existe...

De mal ficaria comigo, se aqui não confessasse que a culpa de tudo isto é da velocidade e do ruído... Claro que um dia todos viajaremos sem aparato, a não ser que alguém acene por nós com o cartão de crédito, para gáudio do barqueiro... 

13.3.15

Por decisão da Conveniência

O cidadão comum pode errar, o governante não!
Este é um argumento que vai fazendo o seu caminho para defesa da classe política. Isto é, suspenda-se autópsia do homem de estado, porque não é da natureza do exercício do poder corromper nem deixar-se corromper e, portanto, o melhor é não mexer no passado porque, no que para trás ficou, não haverá cidadão impoluto. 
Todo o cidadão se esqueceu, uma manhã ou uma tarde, de pagar uma multa, de declarar ao fisco uma remuneração ou até de comprar ou vender um qualquer móvel ou imóvel por um preço combinado para efeitos de declaração...
O melhor é não meter as mãos na lama em que vivemos atolados! Se por um qualquer bambúrrio do destino, formos eleitos ou mesmo nomeados para um cargo público, esse passado, por decisão da Conveniência deve ser esquecido até que o mesmo destino se encarregue de nos devolver ao charco em que habitualmente chafurdamos -  o charco dos homens imperfeitos... 
Nesse dia, poderemos ser detidos para que se faça a prova material. E aguardar o tempo que for conveniente...

12.3.15

Parecemos grandes...

"Inutilmente parecemos grandes." Ricardo Reis

Falamos mais alto, mandamos calar. Senhores da palavra, derrubamos a torto e a direito... só porque o castelo parece nos aguardar no cimo da vaidade...
Não fosse o nevoeiro, o castelo não nos escaparia!
O problema não é tanto a vida que levamos mas aquela que imaginamos como nossa, assente na areia que a maré move a seu belo prazer...

De qualquer modo, insistimos em construir castelos na areia, mesmo quando o mar avança. 
E quando a onda quebra o espelho, compramos um novo ainda maior...e colocamo-lo ao cimo da escadaria.
Só que lá as línguas confundem-se e ficamos a falar sozinhos. Tal como eu!

11.3.15

Paradoxo

Hoje, tantas foram as tarefas, tão absorventes e tão inócuas que, para registo, nada sobra, a não ser aquela entrada na travessa do boqueirão da qual me vi obrigado a sair de marcha atrás...
Claro que também poderia aqui registar a história daqueles seres maviosos que insistem em mostrar que estão ativos e que a vida existe para além da encenação diária, sem falar dos outros que ignoram por inteiro o significado de termos como 'garrote franquista' 'discricionário', 'belicoso', 'complacente'...
Vou ficar por aqui, porque, se continuo, deixo de ser complacente e acabarão por acusar-me de belicoso e merecedor de um qualquer garrote seja ele de Franco, de Putin ou do Estado Islâmico, sem esquecer os restantes ditadores, passados e futuros... 

10.3.15

Debalde, fujo da anacronia...

«Passamos e agitamo-nos debalde.» Ricardo Reis

Quando menos esperava, fui interpelado por causa do significado de 'debalde'. Pensava eu que o termo seria comum! E para minha maior surpresa, também, no mesmo contexto, surgiu a dúvida sobre o significado de 'anacrónico'.
De imediato, conclui que o advérbio 'debalde" será atualmente  'anacrónico'. Mas será só isso? Talvez, mesmo sem de tal terem consciência, os meus interlocutores  tenham optado pelo caminho mais fácil, preferindo a modorra dos dias... a qualquer esforço. Uma das vítimas dessa apatia é a língua portuguesa, cada vez mais maltratada. 
A leitura tornou-se um fardo, e a consulta do dicionário, uma maçada... Por exemplo, ler 30 linhas do Discurso da Guarda (1977), de Jorge de Sena, deixa de rastos qualquer finalista do ensino secundário...
Para terminar, lá tive que explicar que não passo de um professor anacrónico. Debalde!

9.3.15

De regresso a Mafra

Quase todos os anos, visito Mafra no âmbito do estudo do romance Memorial do Convento. A visita de hoje terá sido a última!
A sensação que me fica, no entanto, é a de sempre: uma vila em que o ordenamento do território mistura o rústico com o urbano, ou melhor, em que a construção dos interesses do "psd" foi destruindo a paisagem rural, sob o efeito oceânico.
No longínquo ano letivo de 1977/78, lecionei na antiga escola de Mafra. À época a relação com o Convento era mínima - era uma presença imponente, filha de um rei hipocondríaco e megalómano, oficialmente catolicíssimo e magnânimo, que tinha desbaratado o ouro do Brasil e espezinhado o povo... 
Era um tempo de feroz luta política entre o "psd" e o "pcp", como nunca encontrei em qualquer outra escola. O "psd" ganhou, transformando o concelho num feudo alimentado pelo "ouro" da Europa, havendo mesmo tempo em que o Convento se tornou em arma de arremesso político, quando José Saramago ousou pôr a nu o desvario de D. João V..., mas rapidamente o Convento se tornou na galinha de ovos de ouro local, por conta das centenas de milhares de alunos que ali rumaram, embora muitas vezes o fizessem a contragosto, sem esquecer os milhares de estrangeiros que se deslocaram a Mafra não porque D. João V tivesse mandado construir o Convento, mas porque Saramago escreveu o Memorial do Convento...
Hoje, regressei a Mafra. No essencial, a riqueza não eliminou a pobreza. O Convento dá sinais de falta de obras de manutenção; fico até com a sensação de que há peças que desapareceram e que outras surgem ali como se tratasse de um quarto de arrumos. A visita cobre cada vez menos aposentos, havendo espaços fechados que, se estivessem abertos, nos dariam outra visão do edifício e dos arredores... e os alunos, hoje, mostraram-se muito interessados nos morcegos, quando, outrora, o fascínio se centrava nos ratos que engoliam soldados, livrando-os de partir para as áfricas, perdidos os brasis e as índias...      

8.3.15

Estou sem palavras!

E parece que vou continuar assim por uns tempos. É a melhor estratégia, quando as palavras se atropelam em formas assassinas e nos arrasam as conexões...
Ou tudo se dilui ou as palavras ganham corpo e arrasam-nos a alma...

7.3.15

O estoicismo

Apesar de valorizar o estoicismo, hoje sinto-me como aquele homem que foi submetido a tratos de polé sem saber porquê.
Gastou o dia preso a uma cadeira, às voltas com uma sintaxe de trapos... e, ao mesmo tempo, ainda foi abençoado com umas tantas acusações de fazer um ladrão corar de vergonha.
O estoicismo é uma filosofia recomendada para estas situações, isto se o coração ainda tiver músculo suficiente para não se apagar, que as pernas, essas já deixam muito a desejar... 

A expectativa do estóico é que ainda possa viver um novo dia! Sejamos estóicos!

6.3.15

A culpa é do carteiro!

Infelizmente, o carteiro nunca se esquece de me entregar as missivas da Segurança Social e das Finanças. Além disso, como sou um cidadão em linha, estes serviços também não se esquecem de me enviar uns tantos emails a recordar-me as minhas obrigações, sem esquecer os meus familiares...

Quanto ao primeiro ministro, nunca me passou pela cabeça que o carteiro se esquecesse dele e, sobretudo, que ele tenha levado uma vida tão fora de linha...

Só não entendo como é que paisano tão anónimo e despojado conseguiu chegar a primeiro ministro!

5.3.15

Não está fácil!

Marco Aurélio (Livro VIII, 5) recomenda: «Primeiro não te deixes perturbar, porque tudo se passa de acordo com a natureza universal e em breve não existirás, como já não existem Adriano e Augusto.»  
Não fossem as grilhetas que nos prendem por fraqueza antiga, a recomendação seria apaziguadora. Mais do que o futuro é a engrenagem que nos perturba, são os elos e os laços que nos martirizam. 
Por outro lado, «fixos os olhos na tarefa» que nos resta, nem sempre é fácil observá-la bem, e executá-la «da maneira que nos pareça mais conforme à justiça», porque, na verdade, nunca sabemos o que é a justiça - em certos dias, parece uma enguia que nem com uma folha de figueira é possível agarrar.
Por fim, Marco Aurélio recomenda que façamos tudo «de bom humor, com modéstia e sem astúcia». Marco Aurélio deve ter sido um santo homem, nós é que não. Com tanta víbora nos matos, como é que podemos encarar estes dias «de bom humor, com modéstia e sem astúcia»? 

4.3.15

Pobres estrelas cadentes!

Muita diligência e pouca aprendizagem!
Em resumo, o cansaço não tem justificação, porque mais vale um prato de lentilhas do que uma página de José Saramago.
A expectativa da viagem esgota-se na preocupação de a encurtar e, sobretudo, na vontade de nada saber... as palavras vivem assombradas pela vacuidade, mas não incomodam, são satélites à deriva em torno de pequenas estrelas fátuas que cruzam o firmamento em bebedeiras de amuos e de responsos...

Por comodismo, as estrelas andam há anos a aprender a escrever textos de 200 a 300 palavras e, como castigo, são ritualmente obrigadas a encontrar argumentos e respetivos exemplos, enquanto «o diabo esfrega um olho», sem qualquer proveito e relevância... Na verdade, há muito que as estrelas deixaram de pensar!

Sabe-se que nas madraças, o pensamento é blasfémia, filha da proscrita Agar, e que Ismael só sabe recitar; e esconde-se que nas nossas escolas, as estrelas nem recitar sabem quanto mais blasfemar... E tudo porque ninguém as ensina a pensar... Pobres estrelas cadentes!    

3.3.15

Passos previsto por Marco Aurélio

« Os factos consequentes têm sempre com os precedentes um laço de afinidade. E não é como uma série de membros isolados, que teriam somente um carácter de necessidade; é um encadeamento lógico e, tal como os seres estão ordenados harmoniosamente, assim os acontecimentos manifestam não uma simples sucessão, mas ainda uma admirável afinidade.» Marco Aurélio, Pensamentos Para Mim Próprio, Livro IV, 45.

Passos não leu Marco Aurélio, mas é um homem sério que age sempre de acordo com o grau de conhecimento que tem em cada momento. Paga o que deve, mesmo se a dívida tiver prescrito, e por isso somos governados por um homem que não é perfeito, mas dorme como um justo.
A Igreja de Passos sabe que até Jesus Cristo hesitou antes de cumprir a vontade do Senhor e, como tal, mantém-se fiel à espera da ressurreição.
Aleluia!  

2.3.15

Pierrot que nunca ninguém soube que houve

1893-1970
Ontem, fui visitar a exposição ALMADA NEGREIROS - Pierrot que nunca ninguém soube que houve -, no Museu de Eletricidade. 
Apesar de os quadros mais importantes se encontrarem no Museu de Arte Moderna (FCG), a exposição dá conta de um percurso nem sempre conhecido e, sobretudo, do falso lado ingénuo do autor multifacetado, cujo saber crítico e pluridisciplinar é posto em relevo no acervo apresentado. Um estudioso incontornável do "fazer" do outro e, ao mesmo tempo, criador de uma obra singular que, apesar de modernista, não descurava a tradição portuguesa e europeia.
Pena é que, em nome de um cânone reducionista, a sua obra esteja cada vez mais esquecida, nomeadamente nas nossas escolas!

A exposição está aberta ao público até 29 de Março de 2015. A não perder! A entrada é gratuita.

1.3.15

De que tem mais medo?

«Tornou Blimunda a perguntar, De que tem mais medo, padre Bartolomeu Lourenço, do que poderá vir a acontecer, ou do que está acontecendo...» José Saramago, Memorial do Convento, 16ª edição, pág.192

Na verdade, o futuro não me pode amedrontar. Só o presente, receio, pois subo e desço e mais não sinto do que mediocridade, do que perversidade...
Se fosse à pesca, talvez pudesse sentar-me, em equilíbrio instável, e esperar que a tainha mordesse o isco... 

28.2.15

Falsas vítimas

«... a própria vítima deseja activamente o crime de que será vítima para que, como mártir, possa entrar no Paraíso e enviar o criminoso para o Inferno, onde arderá.» Fethi Beslama, La psychanalyse à l'épreuve de L'Islam, Paris, Aubier, 2002

Não é só Caim que deseja a morte, pois Abel participa ativamente nesse desejo, provocando Caim para que este o mate, para que também ele se liberte dos seus pecados. (Slavoj Zizek, Uma Vista de Olhos aos Arquivos do Islão)

É neste jogo que a Humanidade se deixou encerrar ao não ter resolvido o problema das linhagens, nascido da esterilidade de Sarai, esposa de Abraão, e da impulsividade da escrava Agar, que deu à luz Ismael, filho de Abraão.
A fixação nesse longínquo passado continua a assombrar os nossos dias... Ou, pelo menos, é pretexto para justificar, em nome de Alá / Jeová, as ideologias que só aparentemente são rivais, já que a morte de uma traria consigo a morte da outra...  

27.2.15

Tema adiado

Como ser justo poderia ser o tema deste apontamento. 
No entanto, o rei ordenou que se construísse um convento como agradecimento pela gravidez da rainha, e o romancista decide inventar um amor bestial, liberto de qualquer convenção e de qualquer precaução...
O rei, garanhão público, sentia-se humilhado pela esterilidade da austríaca...e esta, afogada em percevejos reais, só ao confessor poderia dizer a verdadeira causa do desconchavo - o que a História estabeleceu, devido ao segredo da confissão, acabou por não transpirar para a história dos fracassos originais... A culpa é do romancista e de mais ninguém!
Quanto a mim, José Saramago foi injusto com a rainha, sempre cercada pelo cunhado, de seu nome Francisco, famoso marialva caçador de marujos...
E acima de tudo, José Saramago foi injusto com o maneta e com a caçadora de almas moribundas que, sem cortesia, se amavam em qualquer esteira ou monte de palha, sem que daí resultasse qualquer prole, a única riqueza dos pobres... E nem se pode acusá-los de não terem construído qualquer engenhoca: ambos trabalharam na construção da passarola, sem esquecer que Baltasar se cansou a empurrar a carreta... E como recompensa, Blimunda esgota-se como peregrina e o maneta apaga-se no fogo da Inquisição... ao lado de «um que fazia comédias de bonifrates e se chamava António José da Silva» que tanto deliciavam sua majestade D. João V, o Magnânimo...

Em conclusão, mesmo para escrever este apontamento, em que o tema foi adiado, foi necessário ter, um dia, lido o Memorial do Convento. Por mais que digam o contrário, ser justo exige que se seja capaz de distinguir o leitor do charlatão...

26.2.15

Livres de senhores

«O universalismo de uma sociedade liberal ocidental não reside no facto de os seus valores (direitos humanos, etc.) serem universais no sentido de se aplicarem a TODAS as culturas, mas num sentido muito mais radical: isto é, nessa sociedade os indivíduos relacionam-se consigo próprios como "universais", participam diretamente na dimensão universal, contornando a sua posição social particular.» Slavoj Zizek, O Islão é Charlie?, editora Objetiva, fev. 2015

Quem procura uma sociedade livre de senhores só pode incomodar! 
Uma sociedade feita de indivíduos que se relacionam como "universais" e não como extensões de culturas, subordinadas a valores religiosos ou laicos, é o que parece defender o filósofo esloveno, Slavoj Zizek...

A leitura da última reflexão deste filósofo é da maior atualidade, até pela sua natureza provocatória. Na perspetiva de Slavoj Zizek, a Filosofia não existe para dar respostas, mas sim para fazer as perguntas certas. 

25.2.15

Se pouco mais sou...

Não muito longe, há quem perfure e martele de forma descontinuada! Não digo que tal aconteça todos os dias, mas o batuque tende a ecoar sempre que alguém vem, a título cada vez menos definitivo, instalar-se num dos apartamentos vizinhos.
O Destino assim terá determinado e eu não possa fazer mais do que cumprir... Afinal, de que serve o meu desejo de calma se pouco mais sou do que «pedra na orla do canteiro"!
Impedido de desafiar o Fado, aceito, resigno-me e abdico estoicamente de qualquer gesto mais abrupto.
O problema é que o ruído não chega apenas ao entardecer. A (minha) Sorte dita que, logo pela manhã, eu inicie a via sacra do rumor. Assim é ao longo do dia até que a perfuradora e o martelo, de forma descontinuada, completem o ciclo. E mesmo quando adormeço, os meus sonhos misturam jovens estridentes com o martelar de sirenes apressadas...
Que pena que a Fortuna não tenha determinado que eu seja apenas uma «pedra na orla do canteiro"!

24.2.15

Em política, a semântica é uma batata...

Antes que seja tarde demais:
O facto da Troika ter sido renomeada “as Instituições”, o Memorando ter sido renomeado “Acordo” e os credores terem sido renomeados de “Parceiros” – da mesma forma que baptizando a carne de peixe – não altera a situação anterior.
Não podem mudar o voto do povo Grego nas eleições de 25 de Janeiro."

Manolo Clezos, deputado europeu grego opõe-se à decisão do seu partido - Syriza - de alargar o programa de assistência da zona euro.
Com 94 anos, Manolo já deveria ter aprendido que, em política, a semântica é uma batata e o povo bala para canhão.
E como tal, os Gregos (tal como os Portugueses!) ou comem batata ou servem de balas para canhão!
Que venha o diabo e escolha!
(...)
PS. Os Mexicanos bem tentaram matar os espanhóis dando-lhes a batata (tubérculo venenoso) a comer. Só que os espanhóis, através da cozedura do tubérculo, anularam-lhe o veneno. E assim se quebrou a "lógica" inicial...

23.2.15

No limiar

Antes do limiar, eu conhecera o portal e, em certos dias, apenas o postigo. As palavras podem parecer sinónimas, mas para mim nunca o foram. Cada uma retrata um certo tempo, desde logo perdido. Hoje, portal e postigo mais não são do que memória de espaços distintos, com maior ou menor abertura para o mundo, isto é, a rua... De pouco me serve recordá-los - quem lá habitou já lá não mora...
De momento, vivo no limiar. Por enquanto, porque há momentos tão intensos que temo que a corda parta...
Na verdade, vivemos sempre no limiar, só que o não sabemos.




22.2.15

Meus pensamentos

"São coisas vestindo nadas,
Pós remoinhando nas portas
Das casas abandonadas."
Fernando Pessoa

Ontem, atribui inadvertidamente a Ricardo Reis um poema de Pessoa ortónimo. Diga-se que ninguém protestou, talvez por comiseração... A verdade é que me deixei embalar pela sintaxe!
(...)
Se o Poeta reconhece que o seu pensamento se corporiza apesar da sua nudez, se reconhece que o seu pensamento mais não é do que poeira do deserto, ultimamente, o meu pensamento não para de me trair como se apenas sobrasse um corpo donde ele se quisesse ausentar definitivamente.

E talvez não fosse má ideia!

21.2.15

Passemos à frente

Boiam leves, desatentos,
Meus pensamentos de mágoa,
Como, no sono dos ventos,
As algas, cabelos lentos
Do corpo morto das águas.

Boiam como folhas mortas
à tona de águas paradas.
(..)
Fernando Pessoa 

Caruma já se ocupou várias vezes da COMPARAÇÃO, explicitando que ela exige dois termos. E sobretudo que o segundo termo é concreto (arrancado à vivência do autor), visando explicitar uma realidade não palpável, abstrata.

Comparações: Meus pensamentos de mágoa / boiam /como as algas // boiam como folhas mortas /... 

Inacreditavelmente, muitos alunos do 12º ano confundem a comparação com a metáfora, embora não saibam explicar a analogia mental que suporta a segunda. 
Afinal, o que será uma analogia? Será o mesmo que uma comparação? 

Por outro lado, na sequência / Meus pensamentos de mágoa, / Como, no sono dos ventos /As algas, cabelos lentos..., muitos alunos do 12º ano ignoram a VÍRGULA... concluindo que «no sono dos ventos» é o 2º termo da comparação. 
Afinal, qual é a função da vírgula?

Ler Fernando Pessoa exige particular atenção à construção sintática de matriz latina, num tempo em que o Latim foi desprezado. Segundo a orientação didática em uso nas nossas Casas de Letras, o melhor é passar à frente: o importante é procurar a "permeabilidade" entre os textos (versão eufemística da intertextualidade), desvalorizando a interpretação, reservada a hermenêutas.

20.2.15

Dá pena!

Chegam atrasados e sentam-se como se nada estivesse a acontecer. Dois dedos de conversa à direita e à esquerda... e sorriem ou, em alternativa, adormecem. 
Dá pena vê-los assim ora tão desempoeirados ora tão anestesiados. Quando interpelados, mostram-se seguros das suas convicções, chegando, por vezes, a levantar a voz...
(..)
A causa primeira reside na falta de objetivos bem definidos e calendarizados. Como explicação, confessam que ainda não descobriram a vocação. Mas, na verdade, a única vocação que lhes descubro é a da vida fácil... tão fácil que nem o "carpe diem" de Ricardo Reis lhes desperta especial atenção.

19.2.15

Ler Fernando Pessoa

O vento sopra agreste e eu sinto o frio, o que me permite pensar que, apesar do sol ser fonte de calor, circunstâncias há em que devemos, a todo o custo, evitar os passeios sombrios...pois o meu pensamento é totalmente ineficaz se os meus sentidos estiverem desativados.
Esta parece ser uma ideia simples que não autoriza qualquer dissociação do Sentir e do Pensar, ao contrário do que defendem muitos leitores de Fernando Pessoa.
Na verdade, Fernando Pessoa limitou-se a condenar todos aqueles que viviam de ideias que não tinham origem nos sentidos. Ideias mistificadoras e que traziam infelicidade, desnaturalizavam e descorporizavam cada ser humano - já que a humanidade não passa de um mito simplista, mas demolidor.
Cada heterónimo é expressão de um pensamento enraizado em sensações, mesmo que hipoteticamente excessivas ou demasiado ensimesmadas...
Ler Fernando Pessoa é, antes de mais, evitar os passeios sombrios...